"Sou um só, mas ainda assim sou um. Não posso fazer tudo, mas posso fazer alguma coisa. E, por não poder fazer tudo, não me recusarei a fazer o pouco que posso"

segunda-feira, 6 de julho de 2009

ESTUPIDEZ ERUDITA

Dados Técnicos: MISSA NEGRA - Religião Apocalíptica e o Fim das Utopias
Autor: John Gray
Tradução: Clovis Marques
Assunto: Ciências sociais e Ciências políticas
Editora: Record.
Ano: 2007
Páginas: 350

O seu grande mérito consiste em notar que a política contemporânea de massas adquiriu essa faceta de substituta das religiões tradicionais. O que Gray não percebeu é que a imitação não é a obra genuína: o arremedo grosseiro não pode tomar o lugar da religião revelada. Na verdade, o recuo desta é que permitirá ao poder mundano assumir sua forma caricatural e mortífera, ao fazer do Estado o deus redentor das massas, desde o início do século XX.

Classificado por muitos como um dos maiores cientistas políticos vivos e a cabeça pensante que norteia ao menos os mandatários britânicos das últimas décadas, John Gray é professor de Pensamento Europeu na London School of Economics e colunista do jornal britânico The Guardian. O autor já tem vasta obra publicada, parte dela já traduzida para o português, com destaque para o aclamado Cachorros de Palha. Gray é um pessimista ateu, que acredita que a humanidade não ocupa lugar de destaque no universo. Esta crença deriva da sua hostilidade ao cristianismo e vai fundamentar toda a sua análise política.

O resumo que eu faço do livro MISSA NEGRA - Religião Apocalíptica e o Fim das Utopias consiste em uma frase: estupidez erudita. Não obstante, o livro tem méritos, ao levantar questões cruciais e pertinentes, sem as quais não compreenderemos os tempos atuais, principalmente os fatos políticos de bastidores dos EUA e da Inglaterra até a segunda guerra do Iraque, tão bem descritos no livro. Faz também um notável trabalho de historiador do que aconteceu nos tempos recentes.

Gray começa o livro com a seguinte frase: "A política moderna é um capítulo da história da religião". Como sublinhei acima, a palavra religião não é lisonjeira nos seus escritos. O seu grande mérito consiste em notar que a política contemporânea de massas adquiriu essa faceta de substituta das religiões tradicionais. O que Gray não percebeu [ou não quis perceber] é que a imitação não é a obra genuína: o arremedo grosseiro não pode tomar o lugar da religião revelada. Na verdade, o recuo desta é que permitirá ao poder mundano assumir sua forma caricatural e mortífera, ao fazer do Estado o deus redentor das massas, desde o início do século XX.

Ele escreveu: "A história do cristianismo é uma série de tentativas de chegar a bom termo com essa (a de Cristo) experiência fundadora de decepção escatológica" (o anúncio do novo reino iminente). Aqui está a "acusação" principal e a incompreensão mais aguda do que seja o cristianismo. O autor nota que o discurso político contemporâneo consiste na promessa de salvar a humanidade por meio da política, de fazer cumprir a promessa escatológica aqui e agora. Piormente, consiste em assumir que certas formas institucionalizadas das democracias liberais consistem no suposto Fim da História (Fukuyama), tese que Gray repudia fortemente. Aqui ele está certo.

A essência do seu pensamento deságua no relativismo político e cultural, ao que denominará erroneamente de realismo. Esse engano deriva de uma grande lacuna teórica, vez que Gray não tem instrumentos para compreender o caráter gnóstico salvacionista dos movimentos políticos modernos, fatos por ele mesmo apontados, mas insuficientemente analisados. Sua lacuna teórica deve-se à superficial apreciação que ele fez da obra de Eric Voegelin, que mereceu no livro apenas uma única citação. Como se sabe, Eric Voegelin não apenas investigou à exaustão o fenômeno da gnose salvífica na política, como também deu a ele a resposta teórica adequada. O que sobra em Voegelin falta em Gray, embora este autor nunca perca de vista o paralelo entre o movimento político e o fato religioso.

Os surtos de matança citados no livro nos ligam diretamente à definição do mal e do que seja o homem. O problema do quilialismo (ou milenarismo, termo pelo qual o fenômeno é mais conhecido) é conseqüência da deformação da mensagem revelada: o cristianismo jamais pregou que a perfeição coletiva e mesmo individual aconteça neste mundo, ficando esta perfeição como meta para o Além. Os milenaristas querem a perfeição imediata, usando a engenharia social. Já o cristianismo tradicional, quando muito, incita a cidade dos homens a tentar imitar a cidade de Deus. Os gnósticos é que procurarão a perfectibilidade do homem e a salvação aqui e agora pelos instrumentos do Estado, algo inviável e sacrílego. Ao falar em "missa negra", o autor acabou acertando no título, mas não teve como alargar a sua compreensão dos fatos políticos por não compreender que a perversão do cristianismo só existe porque existe também a sua versão integral, correta.

Seu erro consiste em se apoiar teoricamente em dois autores equivocados para sustentar o que ele mesmo chama de realismo político: Maquiavel e Keynes. Ora, o descenso moral da obra do primeiro nada tem de realista enquanto tal. Maquiavel não apenas representa a degeneração moral manifesta no sonho moderno de aperfeiçoar o mundo pela conquista do poder político, sendo ele mesmo o inspirador do quilialismo de todos os revolucionários. A obra de Maquiavel pressupõe um elemento metafísico que, à falta de melhor termo, chamou de Fortuna (alusiva à Roda da Fortuna, do Tarô), algo que Gray, materialista, desconsidera.

O segundo autor, Keynes, que ele contrapõe a Hayek em economia, realizou a mesma tarefa que Maquiavel na ciência econômica, ao colocar o Estado como o centro aperfeiçoador da sociedade e instância eliminadora das crises econômicas cíclicas. O século XX foi o século de Keynes. A gravidade da atual crise econômica é resultado do triunfo de suas teorias, que fizeram os governantes abandonarem precisamente o real, o mundo como ele é, pondo em troca o voluntarismo estatal. À mão invisível de Adam Smith as teorias de Keynes pretendem precisamente ser antídotos para as crises pela força da mão visível do Estado.

Se é óbvio que o quilialismo à esquerda é mais notório e inegável, não é tão óbvio que o mesmo fenômeno se passa à direita do espectro político. Isso porque a chamada direita tem ainda no seu ideal de ação restos da tradição, que lhe impõem travas morais no exercício do poder. Mas Gray quer nos convencer que os supostos crimes de Bush, Thatcher e Blair têm parentesco com os crimes passados dos coletivistas no poder, em especial aqueles da primeira metade do século. Isso é uma evidente má fé intelectual. Leiamos o seguinte trecho: "À medida que se tornava mais militante, a direita utópica também se tornava menos secular, e em seu apogeu na América apresentava muitas das características de um movimento milenarista".

Aqui, Gray ataca a ação no Iraque e todas as medidas preventivas tomadas contra o terrorismo internacional. Seu argumento é que a intervenção no Iraque tinha como pano de fundo messiânico implantar a democracia naquele país. Gray defende o relativismo cultural e político - chamando a isso de realismo - e no texto fica implícito que a manutenção de Saddam no poder, bem como tolerar a tirania nos países não ocidentais, seria ato desse realismo político. Ora, aceitar esse relativismo é um engano brutal. A guerra no Iraque era necessária inclusive como forma de dissuasão dos Estados delinqüentes que apoiavam ostensivamente o terrorismo. A superioridade das instituições e dos valores ocidentais não pode ser contestada. O exemplo do Japão no Pós-guerra é o mais paradigmático do fato de que essas instituições podem ser adaptadas em qualquer parte.

Concluiu: "Em sua militante fé no progresso, a direita aceitou uma corrente radical do pensamento iluminista que renovava, sob novas formas, alguns dos mitos centrais do cristianismo". Direita e cristianismo tornam-se assim sinônimos. Gray, todavia, não distingue o cristianismo reformado (iluminista) que comanda os EUA e a Inglaterra, da Tradição ocidental. Por isso pôde dizer, de forma sofistica, que os governos de direita tornaram-se algo menos secular, como se nos EUA de Bush tivéssemos um núcleo clerical.

Boa parte da obra John Gray gasta na discussão dos fundamentos teóricos da política dos governantes da direita, como Reagan, Bush, Margaret Thatcher e Toni Blair Seu primeiro grande erro foi não diferenciar o discurso desses governantes de sua ação política. Na prática, esses governantes foram keynesianos em economia e maquiavélicos na ação de política externa, praticando aquilo que Gray recomenda: uma suposta política realista. Não diferenciar ação de discurso é um erro elementar em um investigador sério.

Gray tangencia a má fé quando analisa a obra de Leo Strauss, a quem contesta duramente, como o faz a Hayek, tentando provar que o neoliberalismo é uma utopia do livre mercado. Ignora que o mercado é uma realidade dada, e não uma ideologia. A esses autores ele associa todos os equívocos dos governantes, impingindo-lhes o mesmo caráter messiânico óbvio nos coletivismos escancarados, como o comunismo e o nazismo. E aqui temos o segundo erro catastrófico do autor: não perceber a estrutura social do Ocidente como ela está construída, como uma ordem coletivista, mercantilista, socialista, edificada sob a efígie das idéias de Rousseau. No dizer famoso de Peter Drucker, os EUA são hoje um socialismo-fundo-de-pensão. A democracia de massas assassinou o sentido da hierarquia social e transformou o Estado em babá de vastas corporações de desocupados, dependentes de mesada estatal. Por não ver o real é que realismo de John Gray se revelou um verdadeiro ouro de tolo. A suposta direita governou em bases socialistas e as alargou.

Mas sua crítica a Strauss é profunda, embora errada. Ele mostra o essencial do autor alemão: o resgate do direito natural clássico, a idéia de que a razão não é senhora e nem fundamento da moral, que a revelação é condição principal para se perceber o real. Quando insinua que Strauss não escreveu tudo que pensava tem certa dose de razão. Strauss viu o que Ortega y Gasset viu, a insustentabilidade da democracia representativa nos termos em que está construída. Ela patrocina a rebelião das massas, leva ao niilismo e ao socialismo. Mas isso Strauss não precisava escrever, está implícito na sua obra.

O auto denominado realista John Gray se revela inteiro ao final, o progressista que é. Ele defende que o grande perigo para a humanidade é o famigerado aquecimento global e que os governos deveriam aderir ao Protocolo de Kyoto. Na prática, está advogando pelo governo mundial, contrariando sua apaixonada defesa da autodeterminação das tiranias não ocidentais. Ou será que sua idéia de governo mundial só terá jurisdição sobre o Ocidente? Ora, a grande verdade que foi desvelada nos últimos meses é que a humanidade não corre risco algum com as naturais flutuações climáticas. Nem sequer corre riscos com uma ou outra incursão guerreira de suas potências dominantes, sejam estas da Rússia, da China ou dos EUA. Falando em linguagem crua, pouca diferença faz que aconteça uma pequena guerra na Geórgia, no Tibete ou no Iraque. O grande perigo está no uso do Estado como instrumento para a impossível eliminação do risco existencial. A crise está aí para nos ensinar essa dura lição.
Nivaldo Cordeiro
(Publicado originalmente no número 3 da revista Dicta&Contradicta).

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