"Sou um só, mas ainda assim sou um. Não posso fazer tudo, mas posso fazer alguma coisa. E, por não poder fazer tudo, não me recusarei a fazer o pouco que posso"

sexta-feira, 23 de julho de 2010

O ÓPIO DOS INTELECTUAIS

Título original: L´Opium des Intellectuels
Autor: Raymond Aron
Tradução: Yvonne Jean
Editora: UNB
Assunto: Pensamento Político
Edição: 1ª
Ano: 1980
Páginas: 260

Sinopse: “O Ópio dos Intelectuais” de Raymond Aron é uma das obras seminais do século XX. O livro é um contundente libelo de um combatente pela liberdade. O livro é dividido e três partes, precedido de longa e substantiva Introdução, a saber: a primeira trata dos mitos políticos, a segunda da idolatria da história e a terceira da alienação dos intelectuais. O estilo de Aron é direto, irônico, implacável. Lê-lo é um deleito.

(I)

"Se a tolerância nasce da dúvida, que nos ensinem a duvidar dos modelos e utopias, a recusar as profecias da salvação, os arautos de catástrofes".

Raymond Aron.


Por que comentar um livro escrito em 1954, de caráter aparentemente conjuntural? Por que resenhar um livro esgotado e para o qual não deverá aparecer editor interessado na sua publicação? Por que discutir um texto que coloca como tema o Império Soviético, já morto e enterrado? Por que se debruçar sobre uma problemática que já deveria ter sido esquecida nas dobras do tempo? Afinal, por que discutir o conceito de ideologia? Digo-lhe, caro leitor: porque o livro fala de nós, do nosso momento, da nossa necessidade mais premente. É uma luz para aqueles que se encontram encurralados, prisioneiros de alma diante das mentiras sistemáticas dos escribas e fariseus.

Falo do livro "O Ópio dos Intelectuais" (Editora UNB, 1980, primeira edição francesa de 1955), que é uma das obras seminais do século XX. Roberto Campos, que prefaciou a edição brasileira, sublinhava que vinte e cinco anos depois de sua publicação original a obra ainda mantinha a sua atualidade, a mesma que percebo nesse instante. Campos também assinala que a obra foi um ato de coragem, pois "o marxismo era então a grande religião dos intelectuais". Poderíamos dizer diferente hoje em nosso país? Certamente que não, em face do pleno domínio que os intelectuais marxistas têm na universidade, na mídia, na burocracia estatal, na classe política e – é de pasmar! – no próprio meio empresarial. Conservadores e liberais aqui são como restos que se ocultam nas frestas e apenas graças à Internet os seus poucos remanescentes conseguem agora se comunicar. O próximo pleito para a Presidência da República não passa de um duelo entre as facções marxistas, o que mostra o grau de domínio que essa ideologia conseguiu no Brasil, devendo ganhar a eleição a sua expressão mais radical e revolucionária.

O livro é um contundente libelo de um combatente pela liberdade.

Este é um texto inicial de uma série de comentários que farei sobre o livro, talvez mais dois ou três artigos. Ficaria muito longo um único comentário que procurasse fazer uma adequada apresentação e eu quero fazer justiça à importância de que se reveste essa obra-prima do escritor francês.

O livro é dividido e três partes, precedido de longa e substantiva Introdução, a saber: a primeira trata dos mitos políticos, a segunda da idolatria da história e a terceira da alienação dos intelectuais. Não é fácil de ser lido para aqueles que não tenham um conhecimento mais aprofundado do marxismo e das obras dos seus ícones dos anos cinqüenta, como Sartre, Marcuse, Merleau-Ponty, Koestler e outras estrelas que dominavam o meio intelectual mundial, na mídia e nas universidades. Só eles eram lidos. A razão liberal foi deixada de lado. O próprio Aron, como Fridman nos EUA e seus pares mundo a fora, eram vistos como excêntricos que davam as costas á "verdadeira ciência".

Mesmo Aron deixou-se trair – Ó ironia! – ao confessar, no prefácio que escreveu ao livro em 1954, que era "pessoalmente, keynesiano com saudade do liberalismo...". Mais para o final da vida certamente não teria escrito com candidez essa frase, ele, o grande denunciador das ideologias esquerdistas. Foi uma vítima delas também, mas quem escapou desse destino? A mentira ideológica emerge em todos os lugares e é pegajosa como a graxa usada pelos mecânicos.

[É por isso que nutro uma admiração muito especial por Milton Friedman e demais economistas liberais desse período, que resistiram bravamente ao assalto dos falsos economistas que, por traz de equações e sofisticados tratados, outra coisa não fizeram que não a exaltação do Leviatã e do coletivismo. Vida longa a Friedman, que acaba de completar noventa anos. Entre nós, exalto a figura quase quixotesca de nosso ilustre Embaixador Meira Penna, que nunca se dobrou aos modismos dos tempos.]

Para Aron, o marxismo tornou-se a ideologia por excelência, pois "as sociedades ocidentais não têm o equivalente ao marxismo-leninismo, seja como base para o regime, seja como fundamento de uma síntese, ou pseudo-síntese, intelectual". O autor entendia por ideologia "uma concepção mais ou menos sistemática da realidade política e histórica de mistura de fatos e valores".

Aqui temos ainda um outro efeito da perspectiva histórica, que teria ajudado Aron a ver que o marxismo-leninismo e suas derivações, bem como os socialistas em geral, nos final do século XX, fortaleceram-se como nunca em praticamente todo o Ocidente. Não tinha equivalente porque era a mesmíssima ideologia que aqui era dominante. O regime soviético caiu de podre, mas os crentes na ideologia prosperaram em todos os países. O Brasil é a prova mais sólida dessa excrescência histórica que se mantém firme, apesar de tudo, apesar de ter sido desmascarada, apesar de se demonstrar economicamente inviável, apesar de atentar contra as liberdades democráticas e a própria existência do indivíduo enquanto tal, a instância moral da humanidade.

Escrevendo diante dos acontecimentos de 1968, quando fez o texto introdutório (afinal, aquelas arruaças não passaram disso: arruaças planejadas pelos comunistas, em luta contra os EUA e sua campanha no Vietnã), Aron afirmou:

"Não existem, propriamente, novos sistemas ideológicos: o trotskismo e o freudismo-marxismo de Frankfurt remontam, o primeiro, ao princípio da década de 1930, à formação de uma seita marxista-leninista no exílio, que acusa a Igreja estabelecida de infidelidade; o segundo, à década de 1920, à conjunção de Hegel, Marx e Freud, à unidade fictícia das duas revoluções – sexual e político-social. Os revolucionários que promoveram revoluções verdadeiras – Cromwell, Robespierre, Lênin – tinham idéias morais bem diferentes: puros, ou puritanos, não incluíam a liberação dos instintos em seu conceito de liberdade. Mao ao que parece, também prega o domínio dos instintos, não sua liberação. Pode ser que o freudismo-marxismo, adaptado à índole cubana, tenha encontrado no Caribe a sua pátria de eleição".

Mal sabia ele o quanto Cuba iria durar sob a tirania comunista. O estilo de Aron é assim, direto, irônico, implacável. Lê-lo é um deleito. No próximo artigo pretendo escrever sobre o conteúdo da primeira parte, que trata dos mitos políticos.


(II)

"Longe de o marxismo ser a ciência da infelicidade operária e o comunismo a filosofia imanente do proletariado, o marxismo é uma filosofia de intelectuais que seduziu frações do proletariado e o comunismo faz uso dessa pseudociência para atingir seu fim próprio, a tomada do poder".

Raymond Aron


Continuando a resenha do livro "O Ópio dos Intelectuais", de Aron, não pode nos escapar o trocadilho que ele fez no título com a famosa frase de Marx, de que "a religião é o ópio do povo". Aron não o fez por acaso: para ele o marxismo assumiu uma forma de religião secular, abraçada pela "intelectuária" do mundo.

Aqui pretendo fazer um comentário sobre a primeira parte do livro, que trata dos três mitos políticos, a saber: o da esquerda, o da revolução e o do proletariado.

Aron começa fazendo a distinção dos conceitos políticos "direita" e "esquerda", sem o que não é possível distinguir a questão ideológica. É uma tarefa relevante e difícil mesmo hoje, é de se imaginar o quanto foi em meados dos anos cinqüenta. São denominações genéricas que não comportam unidade, mas são úteis para discernir o espectro político. Se a esquerda é uma "saco de gatos", a direita deve ser desdobrada em pelo menos dois grandes blocos, os conservadores e os liberais. E estes, mais das vezes, especialmente no contexto europeu e norte-americano, são também confundidos com elementos de esquerda. [na verdade, liberal no EUA é a esquerda mesmo. É o PT deles.]

A direita sempre se apresenta como partidária da tradição e da ordem, enquanto que "a esquerda apresenta-se como anti-capitalista e combina, numa síntese difusa, a propriedade pública dos instrumentos de produção, a hostilidade contra a concentração de poder econômico batizados de trustes e a desconfiança para com os mecanismos de mercado". Aron foi um dos pioneiros em mostrar que o nazismo se alinhava à esquerda, e não à direita, como fazia crer a propaganda comunista depois da invasão da União Soviética por Hitler.

O que Aron sublinha é que as tiranias que desacreditam no mercado, na livre empresa, nas liberdades individuais, colocando em seu lugar o dirigismo estatal e o regime de partido único – o comunismo assim como o nazismo – são o que se pode chamar de esquerda, a forma antagônica de organização da sociedade capitalista como a conhecemos.

O autor é extremamente contundente ao demonstrar que a estatização (como diríamos hoje) dos meios de produção nem estabelece a igualdade política e nem de rendimentos. "A hierarquia técnico-burocrática, na qual os trabalhadores são integrados, não fica modificada por uma mudança do estatuto de propriedade", afirma, com razão. A hierarquia é mantida, porque essa é a condição humana. Da mesma forma, a distribuição de renda: "O limite da igualização das rendas é traçado pela gravidade da matéria social, o egoísmo humano, mas também por exigências coletivas e morais não menos legítimas do que o protesto contra a desigualdade". Aron tem profunda consciência, qual um liberal clássico, dos limites impostos pela chamada natureza humana, que não pode ser abolida e nem modificada pelos engenheiros sociais.

[À certa altura, Aron se pergunta, olhando a França, "mas onde estão os capitalistas a fustigar"? A pergunta é muito pertinente para o Brasil de hoje, em vista do inusitado fato político que se registra de maciça adesão de muitos membros da direita tradicional aos representantes do marxismo. Até usineiros de cana-de-açúcar de Pernambuco, conservadores tradicionais, andam declarando votos em Lula para a presidência da República.]

Passando a analisar o mito da revolução, Aron afirma que "não se pode considerar inseparáveis a violência e os valores da esquerda: o inverso estaria mais próximo da verdade". Tomando esse mote, talvez caiba aqui uma conclusão, a de que a ação política da esquerda no poder, ainda que a ele chegue de forma pacífica, sempre descambará para a violência revolucionária, seja porque essa ação contraria fatos básicos da condição humana (propriedade privada e liberdade), seja porque seus métodos de progresso baseados no planejamento central impõem a lógica do trabalho compulsório. Só é possível conseguir uma ordem assim pela força.

Aron, enquanto agudo e irônico observador da História, afirma: "Os regimes vitimados por levantes populares ou golpes de Estado não demonstram pela sua queda vícios morais – são muitas vezes mais humanos do que os vencedores – e sim erros políticos... A revolução do tipo marxista não aconteceu porque seu próprio conceito era mítico: nem o desenvolvimento das forças produtivas nem o amadurecimento da classe operária prepararam a derrubada do capitalismo pelos trabalhadores conscientes de sua missão. As revoluções que invocam o proletariado, como todas as revoluções do passado, assinalam a substituição violenta de uma elite por outra. Não apresentam caráter algum que permita saudá-las como o fim da pré-história".

Não escapa a Aron a conexão entre o conceito de revolução e o de revolta, o primeiro tirando partido do prestígio do segundo. Revoltados são aqueles que dizem não à modernidade, sejam ateus (Nietzsche), sejam homens de fé (Bernanos). Eles "têm horror à baixeza, à vulgaridade espalhadas pelas práticas eleitorais e parlamentares... Revoltados e niilistas censuram o mundo moderno: uns por ser o que quer ser, outros por não ser fiel a si mesmo."

Por fim, Aron fecha essa parte do livro analisando o mito do proletariado, que juntamente com o de esquerda e de revolução, dão o eixo explicativo do que move a alma dos intelectuais: são a sua crença e o seu engano. O autor aqui é mais cáustico do que nunca, mostrando as falácias dos que advogam o elemento operário como o libertador da humanidade. "O proletariado, no sentido preciso da massa operária criada pela grande indústria, não recebeu de ninguém – a não ser de um intelectual, originário da Alemanha e refugiado na Grã-Bretanha no meio do século passado (XIX) – a missão de ‘converter a história’, mas no século XX representa menos a classe imensa das vítimas do que a coorte dos trabalhadores que os managers organizam e que os demagogos cercam".

Ler essas páginas é colocar a nu diante dos olhos o besteirol que anima a classe política esquerdista. Basta olhar os programas eleitorais, naturalmente obrigatórios, para que nos deparemos com cada uma das falácias a sustentar suas falsas promessas. O resumo delas é que todas as misérias humanas podem ser resolvidas por e através do Estado. A História ensina que é exatamente o contrário: onde a livre empresa deixou de existir e o mercado foi substituído pelo planejamento central, o que se conseguiu, além do sacrifício da liberdade, foi a miséria econômica e o horror político.


(III)

"Quem pretende formular um veredicto definitivo é um charlatão. Ou a História é um tribunal supremo e só pronunciará a sentença sem recurso no último dia. Ou a consciência (ou Deus) julga a História, e o futuro não tem mais autoridade do que o presente".

Raymond Aron


A segunda parte do livro o "Ópio dos Intelectuais" trata do tema da idolatria da História. A primeira coisa que Aron nota é que os partidos revolucionários se comportam como se fossem uma igreja e os seus membros tornam-se uma congregação de fé. Os congressos desses partidos são apropriadamente chamados por ele de "congressos-concílios". O marxismo é uma forma laicizada de religião e tal como o Papa, arroga-se o princípio da infalibilidade.

A esse caráter religioso, Aron atribui a natureza dos processos contra os dissidentes políticos onde os comunistas chegaram a poder. "Comparáveis à Inquisição, revelam a ortodoxia, ao salientar as heresias", afirma. É comovente a descrição que ele faz dos expurgos dos Partidos Comunistas, das farsas que eram os processos e os julgamentos. Não sem alguma piedade, Aron afirma que "nessa religião sem alma, os oponentes tornam-se efetivamente piores do que criminosos".

Em uma sucessão de curtos e densos capítulos, Aron discorre sobre o pretenso sentido que teria a História, sua pluralidade de significações, as supostas unidades históricas, o suposto Fim da História e a História tratada com fanatismo. É deprimente ver como as pessoas, tomadas pela ilusão ideológica, se deixam levar pelas teses mais mirabolantes.

Na seqüência, o autor demole a ilusão de uma suposta necessidade histórica, seu determinismo, suas previsões e ridiculariza a sua suposta dialética. Nas suas palavras: "A pretensa dialética da história social resulta de uma metamorfose da realidade em idéia. Endurece-se cada regime, atribui-se a ele um princípio único, opõe-se o princípio do capitalismo ao do feudalismo ou do socialismo. Afinal, fala-se como se os regimes fossem contraditórios e como se a passagem de um para o outro fosse comparável à passagem de uma tese a uma antítese. Comete-se um duplo erro. Os regimes são diferentes e não contraditórios e as chamadas formas intermediárias são mais freqüentes e duráveis do que as formas puras". Aron é implacável nas suas conclusões.

É interessante como o autor nota que os cristãos são muito sensíveis à mensagem marxista. Mal sabia ele à época que uma suposta teologia da libertação seria fundada, na qual a mensagem de Cristo foi substituída sumariamente pela mensagem revolucionária. A Igreja Católica no Brasil está hoje majoritariamente contaminada por esse câncer intelectual. Uma ligeira conversa com algum sacerdote engajado na "causa" revela que não são mais cristãos, usam o nome da religião em vão. O marxismo, em sua essência, é radicalmente contra os valores cristãos, contra a ética cristã, contra a sua mensagem. O Cristianismo exalta o triunfo, a dignidade e a responsabilidade do ser individual. O marxismo é o contrário: exalta o coletivo, torna os valores morais relativos e propõe a salvação coletiva pela economia nesse Mundo, em substituição à salvação individual, no Além. Um cristão, por definição, não pode ser marxista, sendo a recíproca verdadeira.

Nas páginas finais desse trecho do livro, Aron lembra: "History is again on move: esta fórmula de Toynbee, dificilmente traduzível, atende a um sentimento forte e estranho que cada um de nós experimentou em dado momento de sua vida. Eu o experimentei na primavera de 1930, quando, ao visitar a Alemanha, assisti aos primeiros êxitos do nacional-socialismo. Tudo estava novamente em questão: a estrutura dos Estados e o equilíbrio das forças no mundo: a imprevisibilidade do futuro pareceu-me tão evidente quanto à possibilidade de manter o status quo". Ler essa citação me remeteu diretamente à minhas angústias mais íntimas. É o mesmo sentimento de que estou tomado ao ver os acontecimentos políticos que de desenrolam no Brasil na atualidade. Os augúrios são os piores possíveis.

São os mesmos, homens da mesma raça, em 1917 em Moscou, em 1933 em Berlim e em 2002 em Brasília. Homens com uma caricatura de consciência histórica são capazes de qualquer coisa para chegar ao poder e para exercê-lo de forma implacável e tirânica. Será a destruição aqui na mesma ordem de grandeza registrada no passado? Quem viver, verá.


(IV)

"O comunismo é uma versão aviltada da mensagem cristã. Dela retém a ambição de conquistar a natureza, de melhorar a sorte dos humildes, mas sacrifica o que foi e continua sendo a alma da aventura definitiva: a liberdade de pesquisa, a liberdade de controvérsia, a liberdade de crítica e de voto do cidadão. Submete o desenvolvimento da economia a um planejamento rigoroso e a edificação socialista a uma ortodoxia de Estado".

Raymond Aron

A terceira e última parte do livro "O Ópio dos Intelectuais", de Raymond Aron, traz uma exaustiva demonstração da alienação dos intelectuais, com farta demonstração por diversos países. Mas o mais notável é a ênfase que o autor dá ao caráter religioso que assumiu as diversas seitas marxistas – socialistas e comunistas – que se tornaram uma forma de religião secular.

Aron desmistifica a idéia de que os intelectuais sejam essencialmente revolucionários. Eles o foram em momentos específicos. Lembra Aron que "os letrados chineses defenderam e ilustraram a doutrina, mais moral do que religiosa, que lhes dava o primeiro, que lhes dava o primeiro lugar e consagrava a hierarquia. O reis ou os príncipes, os heróis coroados ou mercadores enriquecidos sempre encontraram poetas (que não eram necessariamente ruins) para cantar a sua glória. Nem em Atenas, nem em Paris, nem no século V antes da nossa era, nem no décimo nono século após Jesus Cristo, o escritor ou o filósofo inclinaram-se espontaneamente para o partido do povo, da liberdade e do progresso. O admiradores de Esparta que se encontravam no interior dos muros de Atenas eram numerosos, como também aqueles do Terceiro Reich nos salões ou nos cafés da Rive Gouche de Paris".

E, com grande agudeza psicológica, Aron intui o porquê dos intelectuais contemporâneos tenderem para o ativismo e a ação revolucionária: "A conjunção de peritos (profissões técnicas – NC) decepcionados e letrados irritados põe as próprias sociedades industriais do Ocidente em perigo. Uns que procuram eficácia e outros que perseguem uma idéia unem-se contra um regime culpado por não inspirar nem o orgulho do poder coletivo, nem a satisfação íntima de participar de uma grande obra".

O que Aron não sabia à época é que foi colocada em marcha a mais formidável indústria de mentiras por parte dos revolucionários, dispostos a qualquer coisa para fazer triunfar as suas idéias impraticáveis, muitas vezes em sacrifício dos próprios revolucionários. Nos expurgos, eles mesmo que arderiam nas fogueiras. A cegueira ideológica chegou a tal estágio que o sentido de realidade desapareceria. Aqui não é possível deixar de lembrar a maléfica obra de Antonio Gramsci e a engenharia de comunicação política traçada desde os tempos de Lênin, com o propósito exclusive de produzir a mentira política. A ordem era confundir, subverter a moral cristã, solapar os valores mais essenciais da tradição ocidental.

É na alma desses homens que talvez resida a resposta para essa atitude tão insensata e destrutiva. Não creio que o mero impulso em direção ao poder possa explicar o fato, embora reconheça que o mesmo possa estar na origem de sua força dinâmica. Tampouco creio que explique isso algum eventual "pulsão de morte" de corte freudiano. Aron, ainda uma vez, foi genial ao perceber o paralelo com o fenômeno religioso. É, para mim, a tomada da alma desses homens pelo íncubo obsediante, em transe demoníaco, fazendo das massas um súcubo passivo e sugestionável. É na psicologia de Jung que se terão as categorias necessárias para uma correta análise dessa hipnose de massas.

Forças transcendentais estão na verdade em disputa pela alma coletiva e de cada um. É o duelo eterno das forças do Bem e do Mal. A manifestação no mundo político é apenas um reflexo menor desse duelo maior. E não há dúvida de que as idéias coletivistas assumem o lado negativo, são a própria expressão do Anti-Cristo.

"O cristão nunca poderá ser um autêntico comunista, do mesmo modo que o comunista não pode crer em Deus ou no Cristo, porque a religião secular, animada por um ateísmo fundamental, declara que o destino do homem cumpre-se todo inteiro nesta terra. O cristão progressista esconde de si mesmo essa incompatibilidade", nota Aron.

Em e-mail recebido de José Stelle, que reside no EUA, ele me relatou que entrevistou Aron em 1982, quando da sua vinda ao Brasil para o lançamento do livro, para a revista "Visão". Respondendo à pergunta sobre a diferença entre um liberal e um socialista, Aron declarou:

"O liberal é humilde. Reconhece que o mundo e a vida são complicados. A única coisa de que tem certeza é que a incerteza requer a liberdade, para que a verdade seja descoberta por um processo de concorrência e debate que não tem fim. O socialista, por sua vez, acha que a vida e o mundo são facilmente compreensíveis; sabe de tudo e quer impor a estreiteza de sua experiência – ou seja, sua ignorância e arrogância – aos seus concidadãos". Resumiu tudo.

Para concluir, quero aqui indicar a resenha de Roger Kimball ("Raymond Aron & the power of ideas"), publicada no site http://www.newcriteriom.com/ , que pode ser de grande utilidade aos pesquisadores e interessados na obra do autor.
Nivaldo Cordeiro.