"Sou um só, mas ainda assim sou um. Não posso fazer tudo, mas posso fazer alguma coisa. E, por não poder fazer tudo, não me recusarei a fazer o pouco que posso"

segunda-feira, 27 de julho de 2009

CONTRA TODA A ESPERANÇA

Título original: Contra Toda Esperanza
Autor: Armando F. Valladares
Tradução:
Editora: Intermundo (Esta obra foi originalmente publicada em castelhano por Kosmos-Editorial S.A., Panamá, 1985)
Assunto: Depoimento
Edição:
Ano: 1986
Páginas: 319
Sinopse: Este livro não é uma novela. É uma denúncia mundial. É um relato rigorosamente autêntico do que seu autor, Armando Valladares, viu e padeceu durante 22 anos de prisão -absurda e arbitrária- nos cárceres políticos de Fidel Castro.

Valladares descreve a tenebrosa prisão do castelo de "La Cabaña", onde os opositores do regime comunista são justiçados com um simples tiro na cabeça. Denuncia os campos de trabalhos forçados, onde a vida perde todo o sentido. Descreve as celas de repressão e confinamento, a maldade refinada de estilo stalinista.


Preso Político em Cuba - Calabozo en la Cabaña

Revela o funcionamento do "Centro de Exterminação e Experiência Biológica" da prisão de Puerto Boniato, a pior de Cuba, onde médicos soviéticos, alemães orientais e tchecoslovacos, junto com seus colegas cubanos, sistematicamente provocam doenças e realizam experiências psicológicas entre os presos políticos.



"No Brasil, figuras representativas da chamada esquerda católica, como o cardeal Arns, Frei Betto e Leonardo Boff chegaram a ver em Cuba comunista “sinais” do Reino de Deus onde, na realidade, o que existe é uma ante-sala do inferno. É esta a realidade que descrevo em “Contra Toda a Esperança”.

Armando F. Valladares.

Calabozo en la Cabaña


Comentário: "Preso político por 22 anos, recordista mundial de permanência entre as grades por delito de opinião, autor de um dos mais fortes e pungentes livros de memórias já engendrados pelo sofrimento injusto, Valladares tem um lugar assegurado na história do século XX entre os personagens que provaram, por sua coragem e retidão inflexível nas piores circunstâncias, a soberania do espírito livre ante as trevas do diabolismo totalitário. É alguém da estirpe de um Victor Frankl, de um Soljenítsin, de um Richard Wurmbrand; alguém cuja qualidade moral está acima de todas as controvérsias políticas e do qual ninguém tem o direito de falar senão com o devido respeito." (Olavo de Carvalho)

segunda-feira, 20 de julho de 2009

OS DEMÔNIOS

Título original: BiêsiAutor: Fiódor Mikháilovitch Dostoievski (1821-1881)
Tradução: Paulo Bezerra (Tradução do original russo)
Assunto: Romance - Literatura estrangeira
Editora: 34
Edição: 1ª
Ano: 2004
Páginas: 704

Sinopse: Os demônios é um romance essencial para compreender a mente revolucionária, a mentalidade de radicais políticos de todos os matizes e, sobretudo, para compreender uma das mais nefastas criaturas políticas de todos os tempos: o terrorista. O romance é essencial, também, para compreender o utopista ideológico ateu (Stiepan Trofímovitch Vierkhoviénski) que produz o revolucionário prático (Piotr Stiepánovitch).

Inspirado por um episódio verídico ― o assassinato do estudante I. I. Ivanov cometido na Rússia por um grupo niilista liderado por S. G. Nietcháiev em 1869 ―, Dostoiévski faz a anatomia ficcional do fanatismo ideológico, antecipando muito dos horrores dos séculos seguintes, do stalinismo ao fundamentalismo que amedronta o mundo hoje.

O livro trata, também, da redenção do homem ateu (Stiepan) que pretendeu divinizar o mundo e ao final da vida descobre Deus e reconhece que viveu uma ilusão durante toda a sua existência. É o encontro do ateu com Deus.

Este livro é recomendado a todos aqueles que desejam compreender a gênese das idéias revolucionárias e utópicas (Stiepan Trofímovitch Vierkhoviénski) até o aparecimento de um louco (Piotr) que pretende colocá-las em prática originando mais tarde os horrores do marxismo-leninista que vitimou mais de cem milhões de pessoas em todo o mundo. E por que disso? Porque a mente revolucionária dos utopistas pensa que é possível matar Deus e destruir a realidade do mundo existente para colocar em seu lugar um homem novo e um mundo novo, ambos construídos por eles.

José Monir Nasser diz que a obra é “um bisturi afiado dissecando a mente revolucionária”.

Comentários sobre o autor e sua obra:

Dostoievski publicou Os demônios dez anos antes de morrer. Trata-se de um romance a fazer parte do quarteto que compõe o ápice de sua carreira. Os demônios é, de fato, uma referência inevitável no crepúsculo de uma carreira que não conheceu crepúsculo, antes, chegou ao limite no seu máximo, embora o sujeito Fiódor Mikháilovitch já sucumbisse a uma existência torturada tanto pela doença (epilepsia), quanto pelos problemas mais agudos como o vício do jogo, as dívidas altas e recorrentes, a viuvez, a morte de um filho, a prisão e a condenação à morte (da qual se salvou não sem trauma).

Falar em Dostoiévski é falar no romance bruto, no sentido mais metafórico e, simultaneamente, justo para o gênero. Seus temas, seu estilo, nervoso, fundos até a exaustão das figuras e das circunstâncias que as engolem, representam para a ficção moderna uma retomada narrativa que antes dele se dava de forma quase plana. Dostoiévski antecipa Freud, sem as explicações deste, mas com todas as doenças da alma expostas sem piedade, nas ruas, pensões, salas, quartos, salões, e até mesmo numa poltrona; sem conforto ou com conforto, seus protagonistas sofrem o dilema de carregarem o peso de si mesmos.

É de se recortar do romance a morte irrepetível de Chátov (Toda morte é irrepetível, e isso não é metafísica barata. Em Dostoiévski esta máxima, a do irrepetível, se cumpre praticamente de cinco em cinco páginas). Todos são protagonistas, tudo é protagonismo, e o cenário envolve como uma camisa-de-força os seres que cumprem à risca os papéis menos recomendáveis, como Kirillov, uma bomba ambulante, Stavróguin, aristocrata, vendo o mundo de cima e quase cuspindo nele, Piotr Stiepánovitch, que lidera a revolução que prega com a obsessão dos líderes frente aos quais nenhum argumento cala e todo adversário sabe ou saberá, bem cedo, o tamanho da sentença com que Piotr Stiepánovitch responde a qualquer contrariedade.

A dimensão política somada à religiosa faz seu nicho e o que é clamado em nome da sociedade termina por escravizar cada homem.

Um detalhe importante. No Brasil saíram algumas traduções anteriores do livro. Muitas com o título de Os possessos. Paulo Bezerra, que traduziu o livro diretamente do russo, diz que chamar de possessos ao grupo das personagens da obra é tirar-lhes a dimensão demoníaca. E eu acrescento que não há possessão, há demonização expressa nos atos de homens que já não consideram a espiritualidade como única possibilidade humana para levá-lo a verdadeira felicidade que só pode ser encontrada em Deus. O diabo não é inimigo de Deus, porque Deus não tem inimigos. O diabo é inimigo dos homens. Portanto, é preciso combatê-lo.

Enfrentar um romance desse naipe é cair na sua realidade, é o pesadelo das atrocidades que vêm se somando com Lênin, Stálin, Mao tse-tung, Pol Pot, Fidel Castro, entre outros. E não são esses ases do terror os únicos demônios. Há outros, notadamente os que estão sendo produzidos aqui no Brasil e na América Latina.

Portanto, há demônios entre os homens e homens entre os demônios, e a aliança se faz quando os demônios intentam destronar Deus, divinizar a humanidade e o Estado e criar o Brave New World.

Quando o ser humano diviniza o mundo real, o Estado e a sociedade, tudo perde o sentido. A vida de cada um de nós tem que ter um sentido e este sentido precisa ser interior e jamais exterior. Nós é que não queremos enxergar, ou, se enxergamos, onde está a força de espírito para encarar o monstro e extingui-lo em nome de uma humanidade que mereça seu nome?


segunda-feira, 13 de julho de 2009

O RINOCERONTE

Título original: Le Rhinocéros
Autor: Eugène Ionesco
Tradução: Luís de Lima
Editora: Abril Cultural
Assunto: Drama
Edição: 1ª
Ano: 1976
Páginas: 236

Sinopse: Ionesco conta a história de uma cidade pacata que se transforma completamente após a passagem de um rinoceronte por suas ruas. À medida que a origem do paquiderme é discutida e em alguns casos rebatida, ele, misteriosamente vai se proliferando de maneira incontrolável, até finalmente notarmos que os próprios cidadãos da cidade vão aos poucos se metamoforseando em rinocerontes. Nas entrelinhas, é claro que o rinoceronte vem simbolizando o conformismo na qual a sociedade esta estacada. Essa metamorfose sofrida pelos habitantes é uma analogia ao processo continuo de mediocrização que a sociedade vem sofrendo há tempos, um processo que nos dias atuais vem se agravando.

Enredo: Num dia comum, irritantemente comum, de uma cidade comum, onde nada acontece, a não ser um diálogo estúpido de homens que não sabem o que fazer de suas vidas, um rinoceronte enche de poeira uma rua. E causa espanto.

Conversando calmamente num café, as pessoas de repente são sacudidas pela estranha visita, sentem-se ameaçadas, procuram compreender. Nesse mesmo instante, o rinoceronte ainda é inadmissível. Alguém alega que as autoridades não deveriam permitir a visita desse tipo de animais à cidade. Outros procuram raciocinar sobre a hipótese de tudo não passar de sonho. Outros não dão a menor importância, imersos que estão em seu diálogo ridículo.

Bérenger conversa com Jean e não se abala com o estranho fato. Preocupado com seu amor por Daisy e ciumento de Dudard, colega de escritório, ele mal se ocupa de olhar o animal.

Jean dá lições de moral a Berenger, enquanto um senhor idoso conversa sobre silogismos. Pouco a pouco, as frases desencontradas das quatro personagens vão se encontrando e se alternando. O autor ridiculariza, aí, o desentendimento entre as pessoas, a falsa cultura que Jean pretende impor a Bérenger e a falência do raciocínio lógico.

Reaparece o rinoceronte, tempestuosamente, e o grupo discute então o número de chifres do animal: “Bicórnio ou unicórnio?” Em função desse número levanta-se a relação com a origem do rinoceronte: “Da Ásia ou da África?”

Mas qual seja a sua origem, qual seja o número de chifres que ele tenha, um gato é esmagado por sua violência e o perigo, finalmente, se faz notar. Já no segundo ato, o rinoceronte é o centro das atrações e do medo. No escritório onde trabalha Bérenger, comenta-se a atuação do animal. Botard, personagem caracteristicamente científico e metódico, não acredita na existência do animal. Acha que não passa de delírio. É claro: trancado dia e noite em sua atividade burocrática, ele certamente não teria tempo de observar os fatos da cidade. Mas, além disso, suas inclinações políticas levam-no a ver nos rinocerontes uma trama das “forças ocultas”. Botard aponta a necessidade de se “desmascarar os traidores”, desfilando uma série de slogans que trai sua condição de político demagogo.

Também no escritório o pânico se instala quando surge a Sra. Boeuf, esposa de um dos funcionários, dizendo que seu marido está doente e que ela vem sendo perseguida desde sua casa por um rinoceronte. Daisy chama os bombeiros – e estes são outra obsessão de Ionesco, surgindo sempre como a salvação vinda de fora –, enquanto Botard não acredita que os urros da fera escutados por todos sejam de qualquer rinoceronte.

Mas a besta que seguia a Sra. Boeuf é nada menos que seu próprio marido metamorfoseado. Como o dever da mulher é sempre seguir o seu homem, a Sra. Boeuf monta no dorso do imenso rinoceronte e desaparece com ele.


Os rinocerontes proliferam. Ninguém mais pode duvidar de sua existência. Nem o cético e metódico Botard. Um a um, todos os cidadãos estão sofrendo o lento processo de metamorfose em rinocerontes, Aos poucos os cidadãos perdem a pele lisa, a fala, a humanidade.

A transformação se dá também no gosto em certo tipo de afirmações como, por exemplo, a de uma personagem que diz preferir os veterinários aos médicos. Quando Bérenger visita Jean, que se diz doente, a doença já é o início da metamorfose. Nem Jean nem Bérenger pensam – logo no início do diálogo dessa cena – que aquela doença já é a “rinocerontite”. Mas as frases vão se encadeando de tal forma que o espectador, sem perceber, acabará assistindo à trágica mudança que já não será considerada anormal.

Quando Jean se transforma, Bérenger compreende o perigo. Tortura-se com a sua impotência diante da progressiva metamorfose da cidade. Todos sucumbem sem resistir [igualzinho ao Brasil sob os governos comuno-socialistas de FHC e do apedeuta Broncus Rex]. Até Dudard acaba aderindo porque não vê sentido na resistência. O próprio Botard, que se orgulhava de seu espírito minucioso e científico, que fazia a apologia do método e da razão, que via nos rinocerontes uma “maquinação infame”, acaba por torna-se um deles.

Bérenger sente-se cada vez mais só. Daisy, seu amor, é uma grande alienada. Nada a preocupa, nada a impressiona, nem a possibilidade de pegar a rinocerontite. Desfila frases feitas, cuida de Bérenger como se fosse uma criança, e lhe parece muito estranho que seu namorado tenha uma posição tão frontalmente antagônica aos rinocerontes. No fim acaba aderindo como todos os outros.

Resta esse herói surpreendente: Bérenger. Desleixado, negligente, tímido, humilde, generoso. É o homem comum. Ele assume o risco de enfrentar o mal apear de suas armas serem frágeis. Pesa-lhe um vago sentimento de culpa por não saber se está certo ou errado, pois não tem argumentos de ordem intelectual que possam justificar sua insólita posição. Mas na sua determinação medrosa ele é capaz de resistir sozinho: “Eu me defenderei contra todo o mundo... Eu sou o último homem... Não me rendo”.

[Foi assim que o nazismo de Hitler entrou na Alemanha, e é assim que o comunismo dos esquerdopatas está se instalando no Brasil: pela rinocerontite.]
Esta obra é uma crítica a todo o pensamento totalitário - igual a esse que os dois últimos governos implantaram no Brasil - que possa esmagar todos os outros, e que gere um sistema onde não haja mais lugar para qualquer tipo de oposição.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

ESTUPIDEZ ERUDITA

Dados Técnicos: MISSA NEGRA - Religião Apocalíptica e o Fim das Utopias
Autor: John Gray
Tradução: Clovis Marques
Assunto: Ciências sociais e Ciências políticas
Editora: Record.
Ano: 2007
Páginas: 350

O seu grande mérito consiste em notar que a política contemporânea de massas adquiriu essa faceta de substituta das religiões tradicionais. O que Gray não percebeu é que a imitação não é a obra genuína: o arremedo grosseiro não pode tomar o lugar da religião revelada. Na verdade, o recuo desta é que permitirá ao poder mundano assumir sua forma caricatural e mortífera, ao fazer do Estado o deus redentor das massas, desde o início do século XX.

Classificado por muitos como um dos maiores cientistas políticos vivos e a cabeça pensante que norteia ao menos os mandatários britânicos das últimas décadas, John Gray é professor de Pensamento Europeu na London School of Economics e colunista do jornal britânico The Guardian. O autor já tem vasta obra publicada, parte dela já traduzida para o português, com destaque para o aclamado Cachorros de Palha. Gray é um pessimista ateu, que acredita que a humanidade não ocupa lugar de destaque no universo. Esta crença deriva da sua hostilidade ao cristianismo e vai fundamentar toda a sua análise política.

O resumo que eu faço do livro MISSA NEGRA - Religião Apocalíptica e o Fim das Utopias consiste em uma frase: estupidez erudita. Não obstante, o livro tem méritos, ao levantar questões cruciais e pertinentes, sem as quais não compreenderemos os tempos atuais, principalmente os fatos políticos de bastidores dos EUA e da Inglaterra até a segunda guerra do Iraque, tão bem descritos no livro. Faz também um notável trabalho de historiador do que aconteceu nos tempos recentes.

Gray começa o livro com a seguinte frase: "A política moderna é um capítulo da história da religião". Como sublinhei acima, a palavra religião não é lisonjeira nos seus escritos. O seu grande mérito consiste em notar que a política contemporânea de massas adquiriu essa faceta de substituta das religiões tradicionais. O que Gray não percebeu [ou não quis perceber] é que a imitação não é a obra genuína: o arremedo grosseiro não pode tomar o lugar da religião revelada. Na verdade, o recuo desta é que permitirá ao poder mundano assumir sua forma caricatural e mortífera, ao fazer do Estado o deus redentor das massas, desde o início do século XX.

Ele escreveu: "A história do cristianismo é uma série de tentativas de chegar a bom termo com essa (a de Cristo) experiência fundadora de decepção escatológica" (o anúncio do novo reino iminente). Aqui está a "acusação" principal e a incompreensão mais aguda do que seja o cristianismo. O autor nota que o discurso político contemporâneo consiste na promessa de salvar a humanidade por meio da política, de fazer cumprir a promessa escatológica aqui e agora. Piormente, consiste em assumir que certas formas institucionalizadas das democracias liberais consistem no suposto Fim da História (Fukuyama), tese que Gray repudia fortemente. Aqui ele está certo.

A essência do seu pensamento deságua no relativismo político e cultural, ao que denominará erroneamente de realismo. Esse engano deriva de uma grande lacuna teórica, vez que Gray não tem instrumentos para compreender o caráter gnóstico salvacionista dos movimentos políticos modernos, fatos por ele mesmo apontados, mas insuficientemente analisados. Sua lacuna teórica deve-se à superficial apreciação que ele fez da obra de Eric Voegelin, que mereceu no livro apenas uma única citação. Como se sabe, Eric Voegelin não apenas investigou à exaustão o fenômeno da gnose salvífica na política, como também deu a ele a resposta teórica adequada. O que sobra em Voegelin falta em Gray, embora este autor nunca perca de vista o paralelo entre o movimento político e o fato religioso.

Os surtos de matança citados no livro nos ligam diretamente à definição do mal e do que seja o homem. O problema do quilialismo (ou milenarismo, termo pelo qual o fenômeno é mais conhecido) é conseqüência da deformação da mensagem revelada: o cristianismo jamais pregou que a perfeição coletiva e mesmo individual aconteça neste mundo, ficando esta perfeição como meta para o Além. Os milenaristas querem a perfeição imediata, usando a engenharia social. Já o cristianismo tradicional, quando muito, incita a cidade dos homens a tentar imitar a cidade de Deus. Os gnósticos é que procurarão a perfectibilidade do homem e a salvação aqui e agora pelos instrumentos do Estado, algo inviável e sacrílego. Ao falar em "missa negra", o autor acabou acertando no título, mas não teve como alargar a sua compreensão dos fatos políticos por não compreender que a perversão do cristianismo só existe porque existe também a sua versão integral, correta.

Seu erro consiste em se apoiar teoricamente em dois autores equivocados para sustentar o que ele mesmo chama de realismo político: Maquiavel e Keynes. Ora, o descenso moral da obra do primeiro nada tem de realista enquanto tal. Maquiavel não apenas representa a degeneração moral manifesta no sonho moderno de aperfeiçoar o mundo pela conquista do poder político, sendo ele mesmo o inspirador do quilialismo de todos os revolucionários. A obra de Maquiavel pressupõe um elemento metafísico que, à falta de melhor termo, chamou de Fortuna (alusiva à Roda da Fortuna, do Tarô), algo que Gray, materialista, desconsidera.

O segundo autor, Keynes, que ele contrapõe a Hayek em economia, realizou a mesma tarefa que Maquiavel na ciência econômica, ao colocar o Estado como o centro aperfeiçoador da sociedade e instância eliminadora das crises econômicas cíclicas. O século XX foi o século de Keynes. A gravidade da atual crise econômica é resultado do triunfo de suas teorias, que fizeram os governantes abandonarem precisamente o real, o mundo como ele é, pondo em troca o voluntarismo estatal. À mão invisível de Adam Smith as teorias de Keynes pretendem precisamente ser antídotos para as crises pela força da mão visível do Estado.

Se é óbvio que o quilialismo à esquerda é mais notório e inegável, não é tão óbvio que o mesmo fenômeno se passa à direita do espectro político. Isso porque a chamada direita tem ainda no seu ideal de ação restos da tradição, que lhe impõem travas morais no exercício do poder. Mas Gray quer nos convencer que os supostos crimes de Bush, Thatcher e Blair têm parentesco com os crimes passados dos coletivistas no poder, em especial aqueles da primeira metade do século. Isso é uma evidente má fé intelectual. Leiamos o seguinte trecho: "À medida que se tornava mais militante, a direita utópica também se tornava menos secular, e em seu apogeu na América apresentava muitas das características de um movimento milenarista".

Aqui, Gray ataca a ação no Iraque e todas as medidas preventivas tomadas contra o terrorismo internacional. Seu argumento é que a intervenção no Iraque tinha como pano de fundo messiânico implantar a democracia naquele país. Gray defende o relativismo cultural e político - chamando a isso de realismo - e no texto fica implícito que a manutenção de Saddam no poder, bem como tolerar a tirania nos países não ocidentais, seria ato desse realismo político. Ora, aceitar esse relativismo é um engano brutal. A guerra no Iraque era necessária inclusive como forma de dissuasão dos Estados delinqüentes que apoiavam ostensivamente o terrorismo. A superioridade das instituições e dos valores ocidentais não pode ser contestada. O exemplo do Japão no Pós-guerra é o mais paradigmático do fato de que essas instituições podem ser adaptadas em qualquer parte.

Concluiu: "Em sua militante fé no progresso, a direita aceitou uma corrente radical do pensamento iluminista que renovava, sob novas formas, alguns dos mitos centrais do cristianismo". Direita e cristianismo tornam-se assim sinônimos. Gray, todavia, não distingue o cristianismo reformado (iluminista) que comanda os EUA e a Inglaterra, da Tradição ocidental. Por isso pôde dizer, de forma sofistica, que os governos de direita tornaram-se algo menos secular, como se nos EUA de Bush tivéssemos um núcleo clerical.

Boa parte da obra John Gray gasta na discussão dos fundamentos teóricos da política dos governantes da direita, como Reagan, Bush, Margaret Thatcher e Toni Blair Seu primeiro grande erro foi não diferenciar o discurso desses governantes de sua ação política. Na prática, esses governantes foram keynesianos em economia e maquiavélicos na ação de política externa, praticando aquilo que Gray recomenda: uma suposta política realista. Não diferenciar ação de discurso é um erro elementar em um investigador sério.

Gray tangencia a má fé quando analisa a obra de Leo Strauss, a quem contesta duramente, como o faz a Hayek, tentando provar que o neoliberalismo é uma utopia do livre mercado. Ignora que o mercado é uma realidade dada, e não uma ideologia. A esses autores ele associa todos os equívocos dos governantes, impingindo-lhes o mesmo caráter messiânico óbvio nos coletivismos escancarados, como o comunismo e o nazismo. E aqui temos o segundo erro catastrófico do autor: não perceber a estrutura social do Ocidente como ela está construída, como uma ordem coletivista, mercantilista, socialista, edificada sob a efígie das idéias de Rousseau. No dizer famoso de Peter Drucker, os EUA são hoje um socialismo-fundo-de-pensão. A democracia de massas assassinou o sentido da hierarquia social e transformou o Estado em babá de vastas corporações de desocupados, dependentes de mesada estatal. Por não ver o real é que realismo de John Gray se revelou um verdadeiro ouro de tolo. A suposta direita governou em bases socialistas e as alargou.

Mas sua crítica a Strauss é profunda, embora errada. Ele mostra o essencial do autor alemão: o resgate do direito natural clássico, a idéia de que a razão não é senhora e nem fundamento da moral, que a revelação é condição principal para se perceber o real. Quando insinua que Strauss não escreveu tudo que pensava tem certa dose de razão. Strauss viu o que Ortega y Gasset viu, a insustentabilidade da democracia representativa nos termos em que está construída. Ela patrocina a rebelião das massas, leva ao niilismo e ao socialismo. Mas isso Strauss não precisava escrever, está implícito na sua obra.

O auto denominado realista John Gray se revela inteiro ao final, o progressista que é. Ele defende que o grande perigo para a humanidade é o famigerado aquecimento global e que os governos deveriam aderir ao Protocolo de Kyoto. Na prática, está advogando pelo governo mundial, contrariando sua apaixonada defesa da autodeterminação das tiranias não ocidentais. Ou será que sua idéia de governo mundial só terá jurisdição sobre o Ocidente? Ora, a grande verdade que foi desvelada nos últimos meses é que a humanidade não corre risco algum com as naturais flutuações climáticas. Nem sequer corre riscos com uma ou outra incursão guerreira de suas potências dominantes, sejam estas da Rússia, da China ou dos EUA. Falando em linguagem crua, pouca diferença faz que aconteça uma pequena guerra na Geórgia, no Tibete ou no Iraque. O grande perigo está no uso do Estado como instrumento para a impossível eliminação do risco existencial. A crise está aí para nos ensinar essa dura lição.
Nivaldo Cordeiro
(Publicado originalmente no número 3 da revista Dicta&Contradicta).