"Sou um só, mas ainda assim sou um. Não posso fazer tudo, mas posso fazer alguma coisa. E, por não poder fazer tudo, não me recusarei a fazer o pouco que posso"

domingo, 9 de dezembro de 2012

ARQUIPELAGO GULAG

Título original: Arkhipelag GULag
Autor: Alexandre Soljenítsin (1918-2008)
Tradutor: Francisco A. Ferreira, Maria M. Llistó e José A. SEABRA.
Assunto: Comunismo
Editora: Círculo do Livro
Edição: 1ª
Ano: (1973)
Páginas: 608

"GULag" é um acrônimo em russo para o termo: "Direção Principal (ou Administração) dos Campos de Trabalho Corretivo" ("Glavnoye Upravleniye Ispravitelno-trudovykh Lagerey"), um nome burocrático para este sistema de campos de concentração.

Desde os começos da ditadura genocida bolchevique sabia-se da utilização dos campos de prisioneiros. Nada se estranhar visto que a Rússia, entre 1918-1920, mergulhara numa violentíssima guerra civil entre vermelhos (os bolcheviques) e os brancos (as forças czaristas), ampliada ainda mais pela intervenção de diversas potências estrangeiras (além dos alemães, ingleses, franceses, americanos e japoneses). Todavia verificou-se que, no pós-guerra, o regime soviético vitorioso resolveu intensificar sua política prisional.

Muitos dos primeiros campos visavam servir de laboratório ideológico, voltado a demonstrar a notável capacidade de regeneração desenvolvida pelo novo sistema, capaz de reinserir os criminosos, por meio do trabalho produtivo, na sociedade revolucionada. Stalin, inspirando-se no exemplo de Pedro, o Grande, que lançara mão do trabalho forçado para construir São Petersburgo, a partir de 1703, não demorou em fazer o mesmo, mas com uma significativa diferença: O Czar utilizava em sua grande maioria, criminosos condenados; Stalin, presos políticos e todos aqueles não comungavam com o regime comunista.

Milhares de presos políticos foram então arrebanhados para cavarem o grande Canal do Mar Branco (1928-1932) que ligaria Leningrado ao Oceano Ártico, mas que logo se mostrou ultrapassado devido a possibilidade da utilização de caminhões. Todavia, Stalin fez questão de usar a colossal obra para fins publicitários, para mostrar ao país como o regime soviético “mobilizava” o povo para empreender grandes feitos de engenharia.

Resultou disso que, a partir de 1928, a Comissão Yanson, que transferira do Comissariado da Justiça para a OGPU (Polícia Secreta) a supervisão sobre o "degredo administrativo", decidiu batizar os campos como ITL (Ispravitelno trudovye lagerya), simplesmente campos de trabalho corretivo. As instalações existentes na ilha de Solovetsky, no Mar Branco, situado na região semipolar da URSS, elogiadas por Máximo Gorki e por outros escritores soviéticos da época, foram então apontadas como um campo-modelo, arquétipo do que, desde então, foi construído no restante do país. Todo o Arquipélago Gulag surgiu dali, daquela célula prisional boiando num mar glacial.

Para justificar a lotação cada vez maior deles, Stalin apelou para a justificação ideológica de que conforme o socialismo avançava por todo o país, maior era a resistência das forças contrárias a ele. Situação que o obrigava a ser ainda mais duro do que comumente era. Uma curiosa operação matemática então se deu na década dos anos trinta: mais socialismo significava ainda maior população encarcerada.

Uma enorme rede de "campos de reeducação" espalhou-se pela Rússia Soviética, alcançando inclusive as remotas áreas da Ásia Central, como os desertos do Cazaquistão e as margens da imensa estrada-de-ferro que cortava a conhecida Sibéria.

Com as prisões em massa desencadeadas na época da Yezovchnina (as perseguições ao encargo de Nikolai Yezhov, comissário-chefe da então NKVD), quando Stalin determinou a prisão e encarceramento de milhares de suspeitos de "sabotagem" e atividades "anti-socialistas", em geral ex-membros da elite soviética e quadros médios do Partido Comunista, estima-se que o GULAG tenha abrigado, entre 1936-1940, dois milhões de prisioneiros.

Oficial de artilharia durante a Segunda Guerra Mundial, Alexander Soljenitsin, foi condenado no final do conflito por um dos artigos do Código Penal soviético que lhe fixou inicialmente uma pena de dez anos. Cumpriu-a por primeiro numa das prisões de elite situada ao redor de Moscou antes de ser enviado para os sem-fins da Ásia Central.

A vida nesta primeira instalação é que o inspirou a escrever "O Primeiro Circulo", romance cujo titulo foi extraído do "Inferno" de Dante, espaço reservado aos sábios caídos em desgraça. Stalin, por sugestão do seu novo chefe da polícia política Laurenti Béria (1938-1953), havia concordado em erguer cárceres especiais para pesquisadores e homens de ciência denunciados como suspeitos para que eles pudessem trabalhar juntos nos projetos mais urgentes do regime. Para piorarem mais as coisas para ele, foi atacado por um violento câncer no estomago, o que o levou a internar-se num hospital de presos (tema do "O Pavilhão dos Cancerosos").

Liberto após a morte de Stalin, miraculosamente vivo, aproveitando-se da moderada desestalinização que se seguiu, dedicou-se, a partir de 1957, a lecionar matemática em Riazan e a publicar suas novelas e contos que escondera com muito cuidado, muitas delas redigidas nas condições abomináveis da vida de um zek, um prisioneiro dos campos.

Soljenitsin dizia rir-se daqueles homens de letras, seus contemporâneos, que inventavam mil e umas manias, que só conseguiam pegar na pena em condições muito próprias, ideais. Ele aprendera a manejar o lápis ou a caneta ainda quando em marcha com os demais encarcerados, na hora do rancho ou nos intervalos do corte de lenha no mato. A paixão dele pela literatura fazia dele um obcecado registrador de palavras. Viu-se quase como um furioso enchendo um sem-fim de cadernos e resmas de papel, escrito sem margens e com o mínimo de espaço entre uma linha e outra, nas piores circunstâncias possíveis.

Não que a opinião pública do Ocidente não soubesse dos campos de trabalho do regime soviético. Longe disso. Ainda após a Segunda Guerra Mundial, um trânsfuga do governo comunista que pedira asilo político no Canadá chamado Victor Kravchenko os denunciara num livro intitulado na sua edição em inglês como I choose Freedom ("Eu preferi a liberdade", 1947).

Além de afirmar que "a ditadura comunista na URSS não era exclusivamente um problema do povo russo, ou somente das democracias, senão que da humanidade inteira", ele revelara que os comunistas haviam erigido um Estado-Policial como poder discricionário sobre os cidadãos.

Um ataque feroz que ele recebeu da imprensa comunista da França, que tentou desqualificá-lo, acusando-o de mentiroso, rendeu-lhe a vitória em dois processos nos tribunais de Paris, em abril de 1949. O affair Kravchenko, todavia foi esquecido e muitos intelectuais entenderam que a denúncia dele ligava-se às posições anticomunistas dos norte-americanos nos começos da Guerra Fria e, como conseqüência, deviam ser um tanto exageradas, senão descabidas. Além disso, ele aparecera no cenário como um traidor da causa. Na memória de outros, todavia, pesava ainda o fato de que fora o regime stalinista quem impusera uma derrota definitiva ao nazismo. A Europa Ocidental ainda tinha na lembrança o sacrifício dos russos em Stalingrado para querer levar a diante um tema tão espinhoso como aquele levantado por Kravchenko.

Do livro dele, editado em 1947, ao "Arquipélago Gulag" de Soljenitsin, traduzido no Ocidente 27 anos depois, muita desilusão se dera em relação às grandes bandeiras do socialismo.

Os soviéticos haviam intervido com seus tanques em Berlim, em 1953, em Budapeste, em 1956, e em Praga, em 1968. Em 1961, Kruschev, provocando um enorme estrago na imagem internacional do socialismo, determinara a construção do Muro de Berlim, com ordens em disparar em quem tentasse ultrapassá-lo para alcançar o Ocidente. De libertadores da Europa, os soviéticos passaram a ser vistos como seus mais recentes opressores. Deste modo criou-se um clima bem mais favorável ao acolhimento do relato sobre o Gulag.
O livro em si, aprontado em 1973, é caótico. Durante alguns anos, Soljenitsin, como se fora um cuidadoso colecionador, recolheu o mais variado número de relatos e depoimentos de gente que fora condenada aos trabalhos forçados, misturando-os com seus próprios registros. Não se trata, pois, da experiência prisional de um só homem (como, por lembrança, deu-se com "Recordações da Casa dos Mortos" de Dostoiévski), mas sim de uma coletânea de dolorosos e pungentes testemunhos daqueles que sofreram inimagináveis horrores dentro dos Gulags, dos quais a grande maioria jamais saiu.

O livro, traduzido para diversos idiomas ocidentais, teve o efeito de um tufão. Não se tratava de um fugido que saltara o muro ou um renegado do comunismo, mais sim alguém de dentro que sabidamente trilhara pelo purgatório do stalinismo e que sobrevivera, um respeitado escritor que atingira fama internacional e que fora indicado ao Prêmio Nobel, em 1970 (ele temia viajar para Estocolmo com receio de que as autoridades soviéticas não o deixassem voltar). Um homem de letras preso às raízes mais profundas da terra russa, um descendente das estepes da região de Rostov, que se negara a deixar o solo natal e só o fizera por motivo do decreto que o expulsou definitivamente do país, em 1974 (exilado nos Estados Unidos, em Vermont, somente retornou à URSS em 1994, durante o governo de Gorbatchov). Soljenitsin não podia ser difamado como um "agente do imperialismo" ou de estar a serviço dos interesses estado-unidenses como costumeiramente ocorria nesses casos quando os jornais esquerdistas ou pró-comunistas procuravam desqualificar uma testemunha que apontasse seu dedo acusador para a URSS ou o seu regime.

Com o tempo, Soljenitsin, como que desiludido das coisas do mundo, assumiu uma posição cada vez mais pessimista, quase de mensageiro apocalíptico, alguém que, nos moldes dos Velhos Crentes (seita russa do século 19 que tinha ojeriza à ocidentalização e aos costumes modernos), começou a lançar anátemas ao Ocidente, lamentando a perda da originalidade da cultura russa provocada pela Revolução de 1917.

Para afirmar ainda mais sua aparência de Santo Inquisidor dostoievsquiano ou de profeta tolstoiano, cada vez mais misantropo, deixou que as barbas lhe tomassem inteiramente o rosto, assemelhando-se aos patriarcas mujiques ou aos monges ortodoxos, a quem ele via como as mais originais e representativas figuras da "verdadeira Rússia". Na verdade tratava-se de uma atitude de protesto para o mundo Ocidental que se fazia de mouco às suas revelações e às realidades dos fatos.

Excerto do livro: [Como se dava o processo de detenção]
"É certo também que a NKVD, na ausência da pessoa de que necessitava, obrigava os seus familiares a assinar um aviso proibindo-os de qualquer deslocação, e, naturalmente, não custava nada embarcar os que tinham ficado em lugar do fugitivo.
A inocência geral engendra a inatividade geral. Pode ser que não o levem. Pode ser que você escape. Aleksandr Ivánitch Ladijenski era professor da escola da aldeia perdida de Kologriv. No ano de 1937 aproximou-se dele no mercado um camponês e comunicou-lhe da parte de alguém: 'Aleksandr Ovánitch, vá-se embora daqui, você está na lista'. Mas ele ficou: 'Eu sou o pilar da escola e os próprios filhos deles estudam comigo; como me podem prender?' Dias depois foi preso. Não é qualquer pessoa que, como Vánia Levitski, compreende logo aos catorze anos de idade: 'Toda pessoa honrada deve passar pelo cárcere. Agora está preso o meu pai e, quando eu crescer, prender-me-ão a mim'. (Ele foi preso aos vinte e três anos.) A maioria fica inerte numa miragem de esperança. 'Uma vez que você é inocente - como podem lhe prender?' É um erro! Enquanto o arrastam pelo colarinho você não deixa de exorcimar: 'É um erro! Esclarecerão tudo e me libertarão!' Outros são presos em massa; isso é também absurdo, mas cada caso fica envolto nas trevas: 'Talvez aquele, quem sabe?... Mas você!' - você certamente é inocente" Você ainda encara os 'Órgão' como uma instituição com lógica humana: 'Hão de esclarecer e libertar'.
Nesse caso, para que fugir?... E como você pode então oferecer resistência?... Só piora a sua situação e impede que esclareçam o erro. Você não só não resiste, como até desce a escada na ponta dos pés, como lhe ordenam, para que os vizinhos não ouçam".
Nota do Autor:
"E depois, nos campos, que tortura! E se cada agente de cada vez que vai fazer detenções, pela noite, não tivesse a certeza de voltar vivo e tivesse que despedir-se da família?! Se durante as detenções em massa, como por exemplo em Leningrado, quando foi presa a quarta parte da população da cidade (em dezembro de 1934, após o assassinato de Kirov), as pessoas não tivessem permanecido nas suas tocas tremendo de medo a cada pancada na porta e a cada passo na escada, se elas tivessem compreendido que nada mais tinham a perder, e nos seus vestíbulos, com ânimo forte, umas quantas pessoas tivessem feito emboscadas com machados, com martelos, com espetos, enfim com o que encontrassem à mão? É sabido de antemão que essas aves noturnas com bonés não vão com boas intenções - não há risco de errar, descarregando um golpe no homicida. Quanto ao carro da polícia, com o seu motorista solitário, que ficou na rua, não havia senão que arrastá-lo ou furar-lhe os pneus? Os "Órgãos" bem depressa notariam a falta de colaboradores e de meios de transporte, e, a despeito de toda a ânsia de Stálin, teria sido detida a máquina maldita! Se se tivesse... se se tivesse feito isso... Faltou-nos suficiente amor à liberdade e, mais que tudo, a plena consciência da verdadeira situação. Gastamo-nos numa incontrolável explosão no ano de 1917, e depois apressamo-nos a submetermo-nos e foi com satisfação que nos submetemos. Merecemos simplesmente tudo quanto sobreveio depois." [Processo idêntico vê-se no Brasil a partir de 1995. Estamos em 2014, na fase final da comunização do país. Quando perceberem a inconsciência em que meteram o país, será tarde demais].

O Autor:
Escritor russo, de nome verdadeiro Aleksandr Isaevich Solzhenitsyn, nasceu em Kislovodsk, no Cáucaso, a 11 de Novembro de 1918. O pai morreu na guerra, antes do seu nascimento. Aos seis anos, muda-se com a mãe para Rostov, onde vem a fazer estudos de Matemática. Participa na Segunda Guerra Mundial, sendo várias vezes condecorado. Uma carta dirigida a um amigo, em que expressa as suas opiniões sobre Stalin, leva-o à prisão e é condenado a trabalhos forçados. Em 1962 publica "Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch", um depoimento sobre o sistema prisional. "O Primeiro Círculo" e "O Pavilhão dos Cancerosos", editados em 1968 no estrangeiro, trouxeram-lhe o reconhecimento internacional. Agosto 14 corresponde ao início de uma vasta obra de natureza histórica. Em 1970 foi-lhe atribuído o Prêmio Nobel da Literatura, mas receando que lhe interditassem o retorno ao país, não foi recebê-lo em Estocolmo. Pouco depois da publicação de "O Arquipélago de Gulag" em Paris, em 1974, é preso, julgado por traição e, finalmente, condenado ao exílio. Instala-se nos Estados Unidos, prosseguindo a sua obra literária e procurando reunir os dissidentes na sua luta contra o sistema vigente na URSS. Em Setembro de 1991 foi por fim ilibado da acusação de traição pelo governo soviético e em Julho de 1994 volta à Rússia. Escritor de inspiração católica, a libertação interior do homem é o tema central da sua obra e a razão da sua luta. Morreu a 3 de agosto de 2008, aos 89 anos de idade.