"Sou um só, mas ainda assim sou um. Não posso fazer tudo, mas posso fazer alguma coisa. E, por não poder fazer tudo, não me recusarei a fazer o pouco que posso"

sábado, 26 de setembro de 2009

A AMEAÇA TOTALITÁRIA

“Nós assim o compreendíamos, porque assim o queríamos compreender”.
Pero Vaz de Caminha
Por Nivaldo Cordeiro

Tenho escrito reiteradamente sobre os perigos que vejo nos tempos presentes, no que tenho chamado de Estado Total. O Estado contemporâneo, não obstante sua aparência democrática, e talvez até mesmo por causa dela, da democracia no estilo proposto por Rousseau, está cada vez mais parecido com os Estados totalitários que floresceram na primeira metade do século XX e redundaram no nazismo e no comunismo. Veja você, caro leitor, que estamos falando de formas democráticas que descambaram para a supressão do regime de propriedade privada, das liberdades pessoais, do controle permanente da educação dos jovens, mediante a estatização dos cuidados com as crianças, desde tenra idade, a vigilância permanente sobre as pessoas. Aqui me refiro aos países da Europa Ocidental, os EUA e Brasil.

Não será casual que as teses racistas tenham ganhado terreno, assim como aquelas que enxergam os fenômenos pela lógica da luta de classe. As mesmas teses de outrora, os mesmo métodos?

Peguemos a questão da propriedade privada. Pelo menos 40% do PIB (exceto os EUA, que terão que enfrentar seus déficits proximamente mediante brutal elevação nos impostos) está sendo recolhido na forma de impostos; da mesma forma, a propriedade das grandes empresas, notadamente bancos nos últimos tempos, está passado ao controle direto do Estado; a emissão de moeda é monopólio estatal desde o final dos anos Trinta; devemos lembrar que parte considerável da força de trabalho é composta por funcionários públicos e por empregados de fornecedores do Estado (e por “terceirizados”), e que a Previdência Social é estatal, assim como a Assistência Social na maior parte dos países. Quem, de alguma forma, não se ligar economicamente ao Estado está condenado á miséria econômica e, se cair nesta, virará cliente automático do Estado. Se partir para a delinqüência cairá no sistema prisional e os prisioneiros são os mais perfeitos clientes do Estado na atualidade. Eu estou dizendo que a sociedade que está aí já é uma sociedade totalitária, se vista pelo lado da Economia.

Se olharmos pelo lado da representação política, também. A hegemonia das forças de esquerdas alcançou tal grau que a democracia é agora, na melhor das hipóteses, uma comédia de mau gosto. O que se chama de “direita” na Europa não passa de uma variação de uma facção política que não tem menor interesse em mexer nos interesses estabelecidos, isto é, no sistema sindical e de Previdência Social, a verdadeira fonte de poder e de legitimidade nesses países. Os eleitores, amealhados em torno dos trabalhadores sindicalizados e dos aposentados é que escolhem a elite governante. Nos EUA a crise trouxe à tona a mesma realidade política que se vê na Europa e por aqui. Mesmo os políticos nominalmente de “direita” só o são naqueles itens que não contrariam o sistema corporativo vigente. O caso da GM foi emblemático: a empresa, há anos controlada por sindicalista, é pagadora de vultosos salários e benefícios, não capazes de serem cobertos por sua atividade produtiva. Na hora de quebrar, o Tesouro lhe foi em socorro, precisamente para manter inalterados os privilégios imorais dessa elite sindical. E o respectivo curral eleitoral.

A questão dos fundos de pensão é séria. Têm aparência de coisa privada, mas na prática não passam de fundos gigantescos, controlados politicamente por sindicalistas, avalizados, em última instância, pelo poder de Estado. Nos EUA, na Europa e no Brasil. Em toda a parte. São à prova de quebra, tanto quanto os grandes bancos e as grandes corporações. Os elos que ligam ao Tesouro esses fundos ficaram agora bem visíveis. De novo, estamos diante de uma realidade político-econômica típica de Estado totalitário, em que uma elite de políticos e sindicalistas comanda a economia e as instituições, dentro de sua lógica de guilda.

A crise econômica fez soar o alarme dos perigos que aguardam a humanidade se o poder estabelecido for posto em xeque. No primeiro momento, valeram-se da emissão de moeda e da estatização para manter o status quo. Bem sabemos que o equilíbrio econômico não pode jamais ser obtido por essa via, pois seria admitir a abolição das leis econômicas, algo deveras estúpido. Então penso que os bailouts e os rescues apenas adiaram o enfrentamento que precisará ocorrer: como tornar sã uma sociedade que ficou gravemente doente? Como escapar à Segunda Realidade que foi criada pelo agigantamento do Estado, literalmente caindo no real? A falha na administração da superação da crise pelos métodos ditos keynesianos poderá colocar a atual elite dirigente diante da tentação totalitária. Será o esgotamento da Terceira Via e, com ela, a ameaça do totalitarismo. Ainda outra vez.

As forças da Terceira Via estão usando a última carta na manga para superar a crise sistêmica: a construção do Governo Mundial. Claro, é uma falsa solução, na verdade, o caminho do agravamento. E da destruição da liberdade. É um atalho para o totalitarismo em escala planetária. A “fuga para a frente” do delírio político mais maluco. O mundo está sob uma ameaça equivalente àquela que viveu sob Hitler e Stalin, só que a ameaça agora tem nomes mais populares, como Obama e Lula e os atuais governantes europeus. Eu realmente estou preocupado com o futuro imediato, porque não enxergo nenhuma alternativa política a essa gente que está no poder.

Então é preciso ter uma resposta teórica adequada à ameaça totalitária que paira sobre o mundo, até para se poder construir um caminho alternativo ao totalitarismo. Um mundo são terá que resgatar os valores do liberalismo clássico, mas este só pôde vigorar plenamente enquanto a mentalidade vigente era a moral cristã. O que vimos ao longo do século XX foi a destruição paulatina dessa moral, de tal forma que só mesmo uma contra-revolução conservadora, em termos cristãos, terá força para enfrentar o poder de destruição que se aproxima.

Filósofos importantes debruçaram-se sobre o que houve na primeira metade do século XX, para entender a tempestade totalitária que assolou o mundo. Ortega y Gasset deu algumas respostas, na verdade foi uma espécie de profeta do Apocalipse ao publicar, em 1930, seu famoso livro A REBELIÃO DAS MASSAS. Nesta obra ele via que as massas estupidificadas estavam sem condutores, elas que tomaram os freios nos dentes e elegeram os piores para o governo (ou chegaram ao poder por golpe de Estado). O monstro estatal, detentor das modernas técnicas, foi colocado a serviço do apetite mais feroz das massas. O morticínio foi imenso.


Depois da guerra tivermos várias obras analisando o fenômeno. De um lado, o famoso livro de Karl Popper – A SOCIEDADE ABERTA E SEUS INIMIGOS – que atribuiu nada menos ao platonismo a responsabilidade pelos acontecidos. Essa vertente, embora largamente difundida, é claramente uma explicação ligeira e falsificada, que coloca Platão e mesmo Aristóteles como fundadores do historicismo. Sim, Popper acertou em ligar a tragédia ao historicismo, mas cometeu um erro colossal em enxergar suas raízes na filosofia clássica. A via política liberal, seguidora de Popper, bastou-se com essa explicação e baixou a guarda no campo político, de forma que, na segunda metade do século XX a chamada Terceira Via (ou o marxismo ocidental) pôde ocupar todos os espaços e refazer desde dentro a sua revolução, sem ameaçar diretamente a ordem do mercado e os poderes constituídos. O processo de estatização foi lento, gradual e seguro. Os liberais viram cada uma das suas fortalezas doutrinárias e institucionais serem tomadas pelos inimigos da civilização sem reagir, pois as aparências enganosas da estabilidade estavam mantidas, de forma deliberada, pelos inimigos.

A outra linha teórica de explicação da origem do totalitarismo vem da dupla de filósofos germânicos Voegelin e Strauss, fugidos do nazismo e estabelecidos nos EUA. Quero aqui sublinhar a obra deste último, DIREITO NATURAL E HISTÓRIA, que acabou de ser traduzida em Portugal por Miguel Morgado. Neste livro Strauss mostrou que o monstro totalitário nasceu de um outro grego, Epicuro, que é justamente o filósofo que moldou a modernidade e enterrou a tradição clássica. Não apenas o Direito, mas a filosofia política, foram tomados pelo epicurismo. Não casualmente Marx fará a sua tese de douramento sobre o pai do utilitarismo.

Para Strauss, Epicuro, o filósofo da “felicidade”, é uma variante dos sofistas e ao analisar sua influência concluiu: “A aparência de justiça combinada com a injustiça efetiva conduziria ao auge da felicidade... Para ser rigoroso, o auge da felicidade (para Epicuro) é a vida do tirano, do homem que conseguiu cometer o maior de todos os crimes ao subordinar a cidade como um todo ao seu bem particular, e que se pode dar ao luxo de abandonar a aparência de justiça ou de legalidade”. Epicuro é o pai do totalitarismo e o avô de Maquiavel.

Strauss vai mostrar que a superação das loucuras da modernidade só poderá acontecer pelo resgate do Direito Natural, basicamente o resgate de Platão e Aristóteles. Fica mais do que evidente que o livro de Popper, apesar de sua retórica envolvente, é pura tolice filosófica. Popper provavelmente morreu sem se dar conta das besteiras que escreveu, levando legião de leitores a mal compreender os fatos e, ao assim fazer, objetivamente ajudando os inimigos da civilização a tomarem todos os espaços de poder. O primeiro passo para combater a ameaça totalitária é ter uma correta teoria sobre a realidade política.

sábado, 19 de setembro de 2009

HITLER E OS ALEMÃES

Título original: Hitler and the Germans
Autor: Eric Voegelin
Tradutor: Elpídio Mário Dantas Fonseca
Assunto: Filosofia
Editora: É Realizações
Edição: 1ª
Ano: 2008
Páginas: 368

Sinopse: Hitler e os Alemães... não é um assunto do passado porque a consciência humana vive na tensão permanente entre o tempo e os valores espirituais eternos. E o que está eternamente vivo tem de ser preservado e defendido no presente. Talvez, por isso, todo alemão culto conheça a frase escrita pelo poeta Heinrich Heine em 1821: “Onde queimam livros, acabam por queimar pessoas”.

O tema do livro não é uma história das origens, da evolução e queda do regime nacional-socialista, muito embora Eric Voegelin tenha presente algumas das análises clássicas. O tema é a cumplicidade dos alemães no regime nazista.

Entre 1933 e 1938, Eric Voegelin publicou quatro livros que o colocaram em uma crescente oposição ao regime de Hitler na Alemanha. Em virtude disso, foi forçado a abandonar a Áustria em 1938, escapando por pouco da prisão pela Gestapo quando fugiu para a Suíça e, mais tarde, para os Estados Unidos. Vinte anos depois, foi convidado a tornar-se o diretor do novo Instituto de Ciência Política na Universidade Ludwig-Maximilian, em Munique.

Em 1964 Voegelin apresentou uma série de preleções memoráveis acerca do que ele considerou "o problema experiencial alemão central" de seu tempo: a ascenção de Adolf Hitler ao poder, as razões para isso e suas conseqüências para a Alemanha pós-nazista. Para Voegelin, essas questões demandavam um escrutínio da mentalidade dos alemães individuais e da ordem da sociedade alemã durante e depois do período nazista. Hitler e os Alemães, publicado aqui pela primeira vez, oferece a crítica de Voegelin mais completa e minuciosa da era de Hitler.

Voegelin interpreta essa era em relação às ferramentas de diagnóstico oferecidas pela filosofia de Platão e de Aristóteles, pela cultura judaico-cristã e por escritores contemporâneos de língua alemã como Heimito von Doderer, Karl Kraus, Thomas Mann e Robert Musil. Reagindo a publicações acerca da Alemanha nacional-socialista, Voegelin discute a "Anatomia de um ditador", do historiador Percy Schramm, a par de estudos das Igrejas e da profissão legal. Sua pesquisa descobre uma historiografia que foi substancialmente a-histórica, uma Igreja Evangélica Alemã que interpretou mal o Evangelho, uma Igreja Católica Alemã que negou a humanidade universal e um processo legal enredado em homídio.

Enquanto a maior parte das preleções lidam com o que Voegelin chamou sua "descida aos abismos" moral e espiritual do nazismo e de seus corolários, elas também apontam para uma restauração da ordem. Sua preleção "A grandeza de Max Weber" mostra como Weber, enquanto atingido pela cultura dentro da qual Hitler subiu ao poder, já tinha ido além dela, através de sua recuperação angustiante da experiência da transcendência.

Hitler e os Alemães apresenta um tratamento alternativo profundo para o tópico da ligação dos alemães individuais como o regime de Hitler e suas implicações posteriores. Esta leitura completa do período nazista ainda não foi ultrapassada.

Fenômeno semelhante está acontecendo no Brasil com a cumplicidade do povo brasileiro que está levando o país, a passos largos, para um regime totalitário via socialismo marxista. Assim como na Alemanha é preciso, também no Brasil, fazer um escrutínio da mentalidade de cada brasileiro, incluindo notadamente os governantes e intelectualóides psicopatas e toda a mídia engajada.


AS DUAS REALIDADES

A obra de Eric Voegelin, toda ela, é essencial para a compreensão da realidade histórica e política e fornece instrumentos sem os quais o que se passa no Brasil não pode ser compreendido. Um deles, que quero explorar aqui, é aquele que demonstra a gênese dos movimentos gnósticos e os perigos inerentes a eles, que é a análise do abandono da realidade como ela é e a assunção de uma segunda realidade como substituta. Este simulacro passa a ser o referencial para a tomada de decisões individuais e coletivas que levam fatalmente ao desastre. Indivíduos perfeitamente estúpidos tomam as funções de estadistas e passam a reger o Estado. E não estou falando apenas de Lula, não. A assunção da segunda realidade como substituta do real Voegelin chamou de “gnose”. Terá sido essa a sua imorredoura contribuição à filosofia política. Citarei abaixo alguns trechos interessantes do livro HITLER E OS ALEMÃES, já referido em textos anteriores, para resgatar a discussão:

"Lidamos com questões estritamente empíricas: quando o homem, como tal, foi descoberto? E o que ele descobriu ser? Essas descobertas aconteceram respectivamente nas sociedades helênica e israelita. Na sociedade helênica, o homem era experienciado pelos filósofos do período clássico como um ser que é constituído pelo noûs, pela razão. Na sociedade israelita, o homem é experienciado como o ser a quem Deus dirige a palavra, ou seja, como um ser pneumático que está aberto à palavra de Deus. A razão e o espírito são os dois modos de constituição do homem, os quais foram generalizados como a idéia de homem. Não formos além desses conteúdos da idéia de homem, ou seja, sua constituição pela razão e pelo espírito. Isso parece ser o descobrimento definitivo. O que significa existir constituído pela razão e pelo espírito? As experiências da razão e do espírito concordam no ponto em que o homem experiencia a si mesmo como um ser que não existe por si mesmo. Ele existe num mundo já dado. Este mundo em si existe em razão de um mistério, e o nome deste mistério, da causa desse ser no mundo, do qual o homem é um componente, é chamado de 'Deus'. Então, dependência da existência (Dasein) na causação divina da existência (Existenz) permanece até hoje a pergunta básica da Filosofia”. (Página 117)

Veja, caro leitor, que isso é aceitar a realidade como nos é dada. Por exemplo, e quero abaixo explorar a questão com base numa declaração dada ontem pelo vice-presidente da República, José Alencar, a lei da escassez, razão de ser da ciência econômica, é parte integrante dessa realidade imutável que não pode ser superada por artifícios mágicos. Todo o discurso da gnose esquerdista é uma rebelião do Homem contra Deus, na medida em que prega a possibilidade de eliminação dessa condição divina instituidora da realidade. “Comerás o pão com o suor do seu rosto” é um descortino do real. A única alternativa ao trabalho é o roubo, seja diretamente, seja institucionalmente, via tributação do Estado. Os esquerdistas, portanto, ao prometerem algo impossível como a eliminação da lei da escassez, mentem. Ao tentarem pôr em prática seu programa contra a natureza e contra a realidade, perpetram as mais nefandas injustiças e criam atalhos para a construção de sofrimentos indizíveis e agravamento da escassez além daquela normal e superável pelo trabalho de cada um. A reengenharia da realidade contra Deus é o inferno na terra. Continua Voegelin:

“Em ambos os modos, pela procura do divino, o amoroso sair de nós mesmos em direção ao divino na experiência filosófica e o encontro amoroso através da palavra na experiência pneumática, o homem participa do divino. Os conceitos são methexis, em grego, e participatio, em latim, participação no divino. Já que o homem participa do divino, ou seja, já que ele pode experimentá-lo, o homem é 'teomórfico', no sentido grego, ou a imagem de Deus, a imago Dei, na esfera pneumática. A dignidade específica do homem é baseada nisto, em sua natureza teomórfica, de forma e imagem de Deus. Este é um complexo básico com que temos de começar, a fim de investigar a defecção desse complexo. A defecção, em seu âmago, sempre toma a forma de uma perda e dignidade. A perda de dignidade vem através da desdivinização do homem. Mas já que é precisamente essa participação no divino, esse ser teomórfico, que constitui essencialmente o homem, a desdivinização é sempre seguida de uma desumanização. Não se pode desdivinizar sem se desumanizar - com todas as conseqüências de uma desumanização com que ainda temos que lidar. Tal desdivinização é a conseqüência de um fechamento deliberado de si mesmo para o divino, tanto para o racionalmente divino como para o pneumaticamente divino, ou seja, o divino filosófico ou revelado. Em ambos os casos, ocorre uma perda da realidade, já que esse ser divino, esse fundamento do ser, é, na verdade, a realidade também, e se alguém se fecha a essa realidade, esse alguém não possui a experiência dessa parte da realidade, essa parte decisiva que constitui o homem".
(Páginas 118/119).

As palavras-chaves são desdivinização e desumanização. Significam cair na condição animalesca superada na Antiguidade pela religião e pela filosofia. A perda de contato com o divino é a perda de contato da realidade como está dada. A revolta contra o Criador redunda na regressão civilizacional, anterior ao século IV a.C. É a tragédia da modernidade que os homens abracem a estupidez radical em matéria política, nos movimentos redentoristas à moda do comunismo e do fascismo/nazismo, que acabam sempre em banho de sangue e em sofrimentos infindos. Podemos ver aqui na América do Sul um caso em estado avançado de putrefação pneumopatológica, que é a Venezuela. Um país rico artificialmente empobrecido pela demência do povo tomado pela estupidez radical, conduzido por um tirano insensato que representa existencialmente a maioria estupidificada. O desastre econômico será sempre a porta de entrada na desintegração irracional, cuja saída quase sempre se dá pela guerra. Vejamos mais um trecho do livro:

“O homem continua homem em toda a realidade, mesmo quando perde a razão e o espírito como aquelas partes da realidade que o ajudam a ordenar-lhe a existência; ele não cessa de ser homem. E não há nenhuma razão, como ainda se faz tão freqüentemente, em acusar Hitler de desumanidade; foi uma humanidade absoluta em forma humana, porém a humanidade notavelmente desordenada e doente, uma humanidade pneumopatológica. Tal imagem do homem da realidade, portanto, embora falha, não perdeu a forma de realidade; ou seja, ele ainda é um homem, com todo direito de fazer declarações de ordem, mesmo quando a força ordenadora de orientação para o ser divino se perdeu – mesmo assim – a menos que ele coloque uma pseudo-ordem no lugar da ordem real. Então, a realidade e a experiência da realidade são substituídas por uma falsa imagem da realidade. O homem, assim, não vive mais na realidade, mas em uma falsa imagem da realidade, que diz, no entanto, ser a realidade genuína. Há, então, se essa condição pneumopatológica ocorreu, duas realidades: a primeira realidade, onde o homem normalmente ordenado vive, e a segunda realidade, em que o homem pneumopatológicamente doente agora vive e que, portanto, entra em constante conflito com a primeira realidade”. (Páginas 145/146).

Essa é a questão teórica relevante que resgato para comentar a fala do vice-presidente José Alencar. Lembrando que o vice-presidente, antes de ser político, é um empreendedor muito bem sucedido e, pelos critérios habituais, deveria ser alguém “realista”, imerso na realidade como ela é, supostamente insuspeito de agir no mundo na “segunda realidade”. Por ter essa biografia é que o tomo como exemplo acabado da pneumopatologia que tomou conta da Nação brasileira. Em resumo, nosso problema não é apenas o PT, o PSOL, o PC do B e todas as gangues partidárias engajadas na revolução socialista de propósitos homicidas. Eles são apenas o elo febril da ação gnóstica, a mais delirante. Gente como José Alencar e integrantes da elite empresarial (como a FIESP) são talvez os agentes mais perigosos, porque têm dinheiro e poder e legitimam os revolucionários que conduzem a coletividade para o mergulho no abismo.

Vejamos sua declaração, dada à Rádio Eldorado e registrada na edição do Estadão: “Você não pode achatar o consumo de quem não consome. Não temos de ter medo do consumo, mas sim, da fome”. Aparentemente uma declaração banal, mas devemos atentar para o que está dito. Dá a síntese da nossa tragédia.

Vejamos a primeira frase: “Você não pode achatar o consumo de quem não consome”. Um aparente truísmo. Mas quem teria falado em achatar o consumo de quem não consome? E haverá mesmo alguém que não consome? Imagino dois tipos de pessoas que nada consomem: os mortos e os ainda não nascidos. O vice-presidente não se referia a eles, naturalmente, mas aos viventes. Viventes consomem, por definição. Ele não se deu conta de que falou uma absurdidade lógica, uma irrealidade que se fez necessária para fundamentar a segunda afirmação: “Não temos de ter medo do consumo, mas sim, da fome”. Ora, quem tem medo do consumo? Fome, onde há fome endêmica no Brasil? Irresistível aqui lembrar as palavras de Jesus, na Primeira Tentação: “Nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”.

Não ouvi a entrevista e não sei o contexto em que a frase foi proferida. Ela, todavia, espelha a cegueira radical daqueles empenhados em supor que podem eliminar a lei da escassez por meio de políticas estatais. Simplesmente não é possível. Ainda ontem os jornais noticiaram que a inflação está praticamente na faixa dos dois dígitos e que o país caminha a galope para produzir déficits em conta corrente no balanço de pagamento. Como essa realidade foi produzida? Por muitos erros na condução dos negócios do Estado e do país, mas dois pontos são fundamentais para a sua explicação: 1- A frouxidão na política salarial, que tem elevado os salários acima da produtividade e 2- A prodigalidade nos gastos públicos. A lei da escassez se manifesta de muitas formas e uma delas é o país consumir mais do que a sua capacidade de produzir. A absorção além da produção potencial leva a crises no balanço de pagamentos e *obrigam* o Estado a voltar ao princípio de realidade. Não há como enganar a lei da escassez, exceto no discurso dos populistas.

A crise econômica vai se manifestar brevemente e aí passaremos à fase aguda do processo revolucionário. Aí gente como José de Alencar perderá a sua serventia de “companheiro de viagem” dos verdadeiros agentes da revolução. Não imagino Lula promulgando leis de redução de salários para ajustar o Brasil ao mundo real. Aí serão eleitos os culpados de sempre: os empresários, os EUA, os fantasmas de sempre do imaginário socialista. Como os agentes revolucionários controlam o Estado e as forças de repressão, então chegaremos ao estágio final, da violência aberta contra os supostos inimigos dos poderosos do dia. Haverá choro e ranger de dentes. (Nivaldo Cordeiro)

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

KARL MARX segundo ERIC VOEGELIN

Eric Voegelin

Mendo Castro Henriques, professor na Universidade Católica de Lisboa e já conhecido dos visitantes desta homepage, selecionou alguns textos inéditos compostos por Eric Voegelin para o abortado projeto de uma History of Political Ideas e com eles montou um volume, Estudos de Idéias Políticas – de Erasmo a Nietzsche, publicado pelas Edições Ática, de Lisboa, em 1996. Foi portanto em português que esses textos, originalmente datilografados em inglês, se publicaram pela primeira vez no mundo. O volume saiu com uma bela introdução pelo próprio Mendo Castro Henriques e uma nota assinada pela viúva do autor, Lissy Voegelin. - O. de C.


Karl Marx (1818-1883)
por Eric Voegelin
Tradução de Mendo Castro Henriques

1.1. Marx: história e lenda.

Ao iniciar o estudo de Marx, nunca é demais acentuar que a polémica partidária dificultou o acesso à obra; muitos escritos considerados secundários permaneceram inéditos até à edição MEGA de 1927-32 e, ainda em vida, a pessoa histórica de Marx desapareceu debaixo da figura mítica. Nos marxistas da primeira geração e nos da revolução russa, cresceu a lenda que não valia a pena conhecer o filósofo precoce que, apenas a partir de 1845 desenvolvera as verdadeiras intuições no Manifesto e em O Capital, e que foi fundador da 1ª Internacional. Debateu-se, depois, se o verdadeiro Marx era o de Bernstein, Kautsky, Rosa Luxemburgo ou Lenine. Só após o Instituto Marx-Engels-Lenine de Moscovo e os sociais-democratas alemães desenterrarem os manuscritos dos arquivos começou uma interpretação séria na qual se destacam as obras de S.Landshut e J.P. Mayer Der historische Materialismus. Die Frühschriften, 2 vols., Leipzig, 1932.

Por detrás desta história de incompreensão e redescoberta está a tragédia do activista. Para passar do velho para o novo mundo, Marx exigia uma metanoia, semelhante à conversão de Bakunine mas obtida através de um movimento revolucionário. A revolução seria uma mudança radical do homem: permitiria derrubar as instituições e purificar a classe operária. Libertaria a classe oprimida da "porca miséria" (Drecke) e permitiria recriar a sociedade. Marx não queria criar primeiro o povo eleito e depois fazer a revolução: pretendia que a criação do "povo eleito" resultasse da experiência da revolução. Esta ideia é profundamente trágica porque, caso não houvesse revolução, o coração humano não mudaria. O carácter insensato da ideia permaneceria mascarado até que a experiência fosse levada a cabo. E ao contrário do que se passou com o anarquismo de Bakunine, este carácter peculiar da ideia marxiana foi agravado pela visão comunista do novo mundo.

1.2. A visão dos reinos da necessidade e da liberdade.

Marx sobressai entre os revolucionários da sua geração pelos superiores poderes intelectuais. Evoca um novo mundo mas não cai nas propostas delirantes de abolição da sociedade industrial e nas utopias socialistas. Jamais aceitaria a metamorfose comteana da tradição francesa católica dos clercs em intelectuais positivistas, desejosos de conquistar o poder temporal. Através de Hegel e dos jovens hegelianos, herdara as tradições do protestantismo intelectualista luterano, defensor da verdadeira democracia realizada em cada homem. No mundo do sistema industrial, o novo reino da liberdade resultaria da experiência emancipadora da revolução.

Esta visão não foi um apenas um episódio da juventude; permaneceu constante até ao fim da vida. Em O Capital vol.3, reflecte na grande vantagem do sistema de produção capitalista: maior produtividade e, portanto, redução do horário laboral. O homem civilizado e o primitivo têm de lutar com a natureza para satisfazer carências; nenhuma revolução abolirá este reino da necessidade natural, que continuará a crescer à medida das necessidades humanas. A liberdade neste domínio será, quando muito, a regulamentação racional do metabolismo humano. O homem socializado, der vergesellschaftete Mensch poderá controlar colectivamente este metabolismo, reduzindo as horas de trabalho e as perdas de produção e organizando os lazeres em vez de os deixar ao acaso. Só depois começa o reino da liberdade, a finalidade que não resulta da base material mas da experiência da revolução.

A distinção entre os dois reinos é bastante clara. A abolição da propriedade privada não é o fim em si mesmo e o controle colectivo só interessa para diminuir as horas de trabalho. As horas de lazer ganhas são o solo no qual o reino da liberdade poderá enraizar-se. A burguesia usa esse tempo para ócio, entretenimento recreio, jogo, divertimento. Mas será isto preencher a liberdade? Dados os conhecimentos filosóficos de Marx, por reino da liberdade dever-se-ia entender a acção concretizadora das capacidades humanas, algo de semelhante às aristótélicas scholé e bios theoretikos. O decisivo é que a liberdade não provenha da base material mas da experiência de revolução. A superação (Aufhebung) do trabalho convertê-lo-ia em auto-determinação (Selbstbetätigung).

1.3. O descaminho de Marx 1837-1847.

De 1837 a 1847 Marx clarificou os pensamentos que tiveram a expressão tardia atrás esboçada. Após a visão, impunha-se a acção revolucionária. O reino da necessidade seria a indústria menos a burguesia. O reino da liberdade tinha de crescer por si e não podia ser planeado. Entre adoptar a existência romântica à Bakunine, ou o silêncio, optou por preparar a revolução.

1.4. Lenda do Jovem Marx.

Se Marx se sentisse obrigado a produzir uma renovatio revolucionária nos seus contemporâneos através de sua autoridade espiritual, nada resultaria excepto o seu drama pessoal. Mas bastava-lhe mover o Aqueronte no homem, para a liberdade resultar da revolução e a revolução da necessidade. Defendia um ideal de dignidade humana; mas, na acção, desprezava o homem. A revolução que derrubaria a burguesia dependeria de: 1) A análise dos factores do capitalismo que desintegravam o sistema. 2) A forja da organização proletária que iria tomar o poder. Em vez de se tornar o dirigente da revolução, Marx escreveu o Manifesto como apelo à organização das forças que iriam executar a revolução inevitável. Em vez de descrever a sociedade futura escreveu O Capital, análise da sociedade moribunda. A partir de 1845 tornou-se o parteiro da revolução. E foi esta transição do fazer a revolução para o preparar a revolução que constituiu o seu descaminho. A imensidade dos trabalhos preparatórios ensombrou a experiência escatológica que motivara a visão revolucionária e a culminância no reino da liberdade.

1.5. O movimento marxista. Revisionismo.

O descaminho ensombrou a ideia mas não aboliu a tensão revolucionária. As actividades preparatórias puderam ser imitadas por quem não tinha a experiência originária de Marx, provocando a morte do espírito e da esperança de renovação num mundo novo após a revolução. Os marxistas eram quase todos almas já mortas que apenas experimentavam a tensão entre o presente miserável e o imaginado futuro radioso e que desejavam a melhoria da sorte dos operários.

O descaminho intensificou-se com a passagem do tempo. A preparação intelectual e organizacional da revolução tornou-se um modo de vida. Bernstein pôde afirmar: "O que vulgarmente se chama a finalidade derradeiro do socialismo nada representa para mim; o movimento é tudo"; e Kautsky no Neue Zeit de 1893: "O partido socialista é um partido revolucionário; não é um partido que faça revoluções". A revolução foi transformada em evolução. Horários, salários e controles laborais poderiam ser adquiridos por legislação. A ala revisionista tornara-se um movimento de reforma social.

Se no domínio das ideias estes problemas marxistas têm pouco interesse, já no da história são importantíssimos. Para um Kautsky convicto de que revolução é inescapável, o revolucionário apenas tem de esperar que a situação esteja madura para agir. O revolucionário genuíno aguarda; o utópico faz aventuras. Este descaminho quase cómico de Kautsky aparece já no Marx de 1848-50. Até à revolução de Fevereiro, Marx esperava a grande revolução. A secção 4 do Manifesto revela esse estado de espírito: "A revolução burguesa na Alemanha será apenas o prelúdio de uma evolução proletária imediatamente subsequente". Quando a revolução falhou, foram necessárias muitas explicações. A primeira fase do falhanço foi explicada em A Luta de Classes em França, 1850; a segunda fase em O 18 Brumário de Luís Napoleão, 1852. Em 1850, no Discurso à Liga Comunista desenvolve pela primeira vez a táctica da luta de classes, cunhando a palavra de ordem "evolução permanente". Depois de grande intervalo escreve A Guerra Civil em França, 1871 para explicar o falhanço da Comuna. Após a morte de Marx, Engels prosseguiu estas explicações. Para a história da Liga dos Comunistas, 1885 prevê a revolução para breve, efabulando a existência de ciclos imaginários de 15 ou 18 anos. No prefácio de 1895 à reedição de A Luta de Classes em França, fascinado com a existência de dois milhões de votantes sociais-democratas, Engels louva-se nos excelentes resultados dos processo legais de luta. Na expansão da Social-Democracia, vê um fenómeno semelhante ao crescimento do Cristianismo na decadente sociedade romana. Bismarck é o Diocleciano alemão. E como se vê, Kautsky podia razoavelmente considerar-se o portador do facho marxiano.

1.6. O movimento marxista. Comunismo.

O descaminho que levou à revolução comunista apresentou-se como regresso ao verdadeiro Marx. Após 1890 surgem radicais que já não aceitam o reformismo evolucionista. Lenine perante Kautsky tem a mesma atitude de Marx perante os sindicalistas ingleses. Pretende uma élite partidária, rejeita a cooperação democrática, quer a concentração do poder e despreza as massas que podem ser compradas mediante vantagens, como se vê no discurso de Genebra em 1908. Com as lições ainda frescas da revolução falhada de 1905, Lenine acentua os aspectos violentos do Comunismo. A Comuna de 1870 falhou porque não foi suficientemente radical, não expropriou os expropriadores, foi indulgente para com inimigos, tentou influenciar moralmente em vez de matar, não percebeu a acção militar e teve hesitações. Mas pelo menos lutou, demonstrando assim como lidar concretamente com o problema da revolução. A insurreição russa de 1905 mostra que a lição fôra aprendida e os Sovietes de trabalhadores e de soldados indicavam a actuação correcta .

Reconquistava-se assim a tensão revolucionária ao nível da acção no reino da necessidade. A visão marxiana aparece em parte na obra de Lenine e nas fórmulas da Constituição Soviética de 1936, através do reconhecimento de que a revolução socialista ainda não produziu o verdadeiro reino comunista. A URSS é uma união de repúblicas socialistas guiadas pelo partido comunista em direcção a um Estado perfeito, distinção que remonta à Crítica do Programa de Gotha e Erfurt, 1875. Na fase original da revolução, o comunismo incipiente compensará o trabalho de acordo com a respectiva qualidade e quantidade. Na fase superior, o trabalho já não será meio de vida mas sim a maior necessidade da vida (Lebenbedürfnis). O princípio então será, de cada um conforme a sua capacidade, a cada um conforme a sua necessidade". Esta fórmula de Enfantin em1831, é parafraseada por Louis Blanc em 1839 e depois usada por Marx. Em O Estado e a Revolução, 1917 Lenine usou-a de modo que se tornou um dos ícones semânticos do comunismo russo. O contexto táctico da distinção reforça a visão de que o comunismo final é remoto (está a décadas de distância segundo Marx, a séculos segundo Lenine) enquanto a fase imediata é de pós-revolução. Os erros repetidos das explicações e das tácticas comunistas acerca do falhanço do milénio como passo necessário e inevitável para o respectivo advento, acabaram por cair no ridículo após a 1ª Grande Guerra, sendo estigmatizadas por Karl Kraus como o tic-tac dos tác-ticos marxistas.

1.7. Triunfo político do marxismo.

Num artigo de Enciclopédia de1914, Lenine faz curta biografia de Marx e depois expôe o Materialismo Filosófico, baseando-se no Anti-Dühring, na dialéctica em Engels e Feuerbach e na concepção materialista da história, da página famosa da Crítica da Economia Politica. Depois vem luta de classes e doutrina económica, socialismo e táctica. Não há uma só palavra sobre o "reino da liberdade" e as suas precárias realizações. Deste modo, Lenine e os leninistas recuperaram a tensão revolucionária no domínio da necessidade mas perderam-na ao nível da liberdade. A passagem do tempo obrigava-os a considerarem cada vez mais os acontecimentos históricos como passos tácticos. Após 1917 continuou a debater-se se aquela era mesmo a grande revolução, se apenas o seu começo, se deveria ser expandida no mundo, se estaria segura enquanto não fosse mundial, se poderia ser num só país, quanto tempo levaria o Estado a desaparecer,etc. Como após o triunfo russo não surgiu o Pentecostes da liberdade, surgiu a inquietação. O jogo da táctica servia para os dirigentes mas o comum não o entendia. Passaram dez, vinte anos, e o Estado não desaparecia. E a relevância doutrinária de Estaline consiste em ter encontrado um substituto para o milénio - a pátria do socialismo. A injecção de patriotismo no comunismo russo é um apocalipse substituto para massas que não podem viver em permanente tensão revolucionária. Mas a táctica do descaminho não desaparece só porque uma paragem táctica foi oferecida às massas.

2.1. Dialéctica invertida. A formulação da questão.

A dialéctica da matéria é uma inversão consciente da dialéctica hegeliana da ideia, e corresponde a processos semelhantes praticados por sofistas, iluministas e anarquistas. Sob a designação mais respeitável de "materialismo histórico" ou mesmo "interpretação económica da história e da política" é correntemente aceite e surpreende que o diletantismo filosófico de tais teorias não abale a sua influência maciça. Dialéctica é um movimento inteligível das ideias, quer na mente quer noutros domínio do ser ou, então, em todo o universo. Hegel interpretava a história dialecticamente por considerar o logos incarnado na história. No Prefácio à 2ª ed. de O Capital, 1873, afirma Marx que "o meu método dialéctico nos seus fundamentos não só difere do dos hegelianos mas é o seu oposto directo". Na 1ª ed. declarava-se um discípulo do grande pensador contra os autores medíocres que o tratavam como um "cão morto". Considera que na forma mistificada hegeliana, a dialéctica é glorificação do que existe. Na forma racional marxiana "explica a forma do devir no fluxo do movimento". Ao compreender criticamente o que existe positivamente, também implica a compreensão da sua negação e desaparecimento.

A intenção marxiana de inverter (umstülpen) Hegel, considerado como de pés para o ar, assenta numa incompreensão da dialéctica. Para Hegel a ideia não é o demiurgo do real, no sentido de "real" significar o fluxo de realidade empírica que contém elementos que não revelam a ideia. Hegel debate se a realidade empírica é apenas um fluxo ou se tem uma ordem; como filósofo, tem de discernir entre a fonte de ordem e os elementos que nela não cabem. A dialéctica da Ideia é a sua resposta a este problema. Mas Marx abole o problema filosófico da realidade precisamente antes de praticar a inversão; não inverte a dialéctica: recusa-se sim, a teorizar. Trinta anos antes mostrara na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 1843 que compreendia o problema da realidade mas que preferia ignorá-lo. Criticara então a concepção hegeliana por não estar à altura de conceito de realidade. (Cf. notas à secção 262 de CFDH). Os filósofos têm o hábito de questionar a realidade. Em vez de deixar a essência como predicado da realidade existente, extraem-na para sujeito, "die Prädicate selbst zu Subjekten gemacht". Mais do que censurar Hegel, Marx estava a atacar a filosofia. Os filósofos, de facto, não deixam a realidade em paz nem se conformam que a ordem seja produto do real.

2.2. A proibição-de-perguntar ou Fragesverbot.

Mas se afinal Marx compreendia perfeitamente Hegel, como revela a passagem da Crítica da Economia Política, p.lv., onde mostra que a filosofia crítica discorda de visão pré-crítica, foi talvez por desonestidade intelectual que deliberadamente se fez desentendido. É um problema de pneumopatologia: receava os conceitos filosóficos, sofria de logofobia. Engels no Anti-Dühring, ed 1919, pp.10 e ss., dissera que o materialismo moderno é dialéctico pois dispensa uma filosofia acima do discurso das ciências. Enquanto a dialéctica pesquisar leis e processos de evolução, a filosofia é supérflua. Cada ciência quer clareza no contexto total das coisas e dos conhecimentos das coisas (Gesamtzusammenhang); mas uma ciência particular do total é supérflua e pode ser dissolvida em ciência positiva da natureza e da história. Também aqui, apenas uma pneumopatologia pode conferir sentido a estas afirmações de Engels. Os conceitos críticos conduziriam ao contexto total da ordem do ser ou ordem cósmica. Um contexto total não deve existir para o sujeito autónomo de que Marx e Engels são insignificantes predicados; a existir, é só como predicado de todos os sujeitos, nomeadamente Engels e Marx.

Atingimos aqui o estrato profundo da revolta marxiana contra Deus. A análise levaria a reconhecer a ordem do logos na constituição do ser, esclarecendo como blásfémia inútil a ideia marxiana de estabelecer um reino da liberdade e de mudar a natureza do homem através da revolução. Como Marx se recusa a utilizar uma linguagem crítica, temos de compreender os símbolos a que recorre. Marx criou um meio específico de expressão: quando atinge um ponto crítico, apresenta metáforas que forçam as relações entre termos indefinidos como se viu no já citado passo do Prefácio, p.xvii " o ideal nada mais é que o material transformado e traduzido na cabeça do homem ". Seria uma afirmação brilhante se condensasse numa imagem o que já fôra dito de modo crítico. Mas o problema é que não existe esse contexto crítico. O que é "pôr na cabeça" ? É milagre fisiológico ? Actividade mental ? Acto cognitivo ? Processo cósmico ? Atente-se de novo na passagem da Kritik p.lv:

1ª "Na produção social dos seus meios de existência, os seres humanos efectuam relações definitivas e necessárias que são independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um estádio definido de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais". O estilo é fraco mas passagens anteriores explicaram cada um destes termos. 2ª "O agregado destas relações de produção constitui a estrutura económica da sociedade". Nada a dizer. 3ª "A estrutura económica da sociedade é a base real na qual uma superestrutura jurídica e política surge e a que correspondem formas definitivas de consciência social". Por que razão é a economia a base ? Nada no texto o justifica. 4ª "O modo de produção dos meios materiais de existência condiciona todo o processo da vida intelectual, social e política". Mas que significa condicionar ? Não se explica ! 5ª "Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é, pelo contrário, o seu ser social que determina a sua consciência".Então passa-se sem mais de condicionar para determinar ? E o que é ser e consciência ? Esta passagem célebre ilustra como Marx salta de problemas concretos de economia e de sociologia para uma especulação com símbolos não-críticos. A metáfora é um intrumento ditatorial que impede o debate. E em rigor, é impossível uma análise crítica da doutrina marxiana, porque não existe uma teoria marxiana do materialismo histórico.

2.3. Especulação pseudológica.

Então que faz Marx? Para referirmos a sua "teorização" efectuada com uma linguagem não-teórica, podemos falar de especulação pseudológica, uma teoria aparente apresentada como teoria genuína e que supôe uma filosofia genuína do logos que pode ser pervertida. A inversão marxiana é a transformação pseudológica da especulação de Hegel. Não inverteu Hegel porque o material não é a realidade de Hegel nem o seu ideal é a ideia de Hegel. A vulgata materialista afirma que tudo é disfarce de interesses materiais (económicos, políticos, etc.). Marx era um pouco mais sofisticado. Reteve a visão de Hegel de que a história é a realização do reino da liberdade. E Engels louva Hegel que se ocupou da ordem inteligível da história mas aponta-lhhe a contradição entre a lei dinâmica da história e a insistência de que já existe o Inbegriff, o total da verdade absoluta. Censura a tentativa de interpretar a história como desdobramento de uma ideia que alcançou conclusão no presente. Reconhece, portanto, a falácia da gnose histórica: o decurso empírico da história não deve ser interpretado como o desdobramento da Ideia.

Mas Engels engana-se redondamente ao argumentar que o processo da história, por natureza, não encontra conclusão natural mediante a descoberta de uma verdade absoluta. Pelo contrário, esse seria o único modo possível de encontrar uma conclusão para o decurso empírico da história; pela mesma razão, a história não é fechada mas permanece processo transcendental. A falácia desta gnose consiste na imanentização da verdade transcendental. Se quissesse dizer a verdade, Engels deveria afirmar que o fim-da-história imanentista não pára a historia e, portanto, não deve ser usado. Mas para Engels apenas a realidade empírica tem significado como desdobramento da ideia mas sem a conclusão, um eterno fluxo de Heraclito. A realidade hegeliana do desdobramento da ideia é abolida e fica só a realidade empírica como se fosse uma Ideia. Do mesmo modo se explica a incompreensão do problema de Hegel por parte de Marx como-se-fosse deliberada. Arrasta-se o significado da ideia para a realidade, sem encontrar o problema da metafísica da ideia.

A confusão entre realidade empírica e a realidade da Ideia arrasta a dialéctica da ideia para a realidade empírica. O marxiano apresenta o filósofo como uma criança da escola que ainda acredita na conclusividade dos sistemas metafísicos. Mas então o marxismo não seria também um dia ultrapassável ? Na confusão em que Engels se move, as dificuldades deste género são ultrapassáveis pelo simples esquecimento. Cem páginas adiante, Engels reconhece que Hegel descobriu que o decurso da história é a realização da liberdade; Hegel compreendeu que a liberdade é a intuição da necessidade. "A necessidade é cega apenas enquanto não compreendida". A liberdade da vontade é apenas a capacidade de tomar decisões baseadas em conhecimentos (Sachkentnnis). E a liberdade progride com as descobertas tecnológicas. A máquina a vapor é a promessa da "verdadeira liberdade humana". Que a incarnação do logos seja substitida pela máquina a vapor é bem um sintoma da indisciplina intelectual de Engels, na qual se conjugam várias tendências da desintegração ocidental.

1. A gnose de Marx-Engels difere da de Hegel apenas por afastar um pouco o fim-da-história, para abarcar a curta etapa da revolução.

2. Como só a forma da conclusão intelectual é de Hegel, não a substância, o intelecto programático torna-se o portador do movimento. Há um salto revolucionário para a natureza revolucionada do homem. Elimina-se o bios theoretikos. Só fica o conhecimento do mundo exterior. Quem conhecer o problema do propósito que causa indecisão, será livre. E Lenine, que se baseia mais em Engels do que em Marx, louva aquele no artigo de Enciclopédia em 1914 sobre Os Ensinamentos de Marx por transformar a coisa-em-si em coisa-para-nós. É a destruição da substância humana.

3. A fórmula de que a liberdade consiste no domínio do homem sobre a natureza e sobre si próprio, lembra as posições de Littré, Mill e de outros intelectuais positivistas e liberais que são fontes de Engels. Há bastante espaço entre as capas do livro para desenvolver esta especulação pseudológica. Apesar de ter dissolvido a existência humana, Engels ocupa-se da moral cristã-feudal, burguês moderna e da moralidade proletária. Não existe outra ética absoluta a não ser o sistema proletário, tema maior daEndgültigkeit como sistema moral de sobreviver no fim.

2.4. Inversão.

Vimos de que modo o ataque anti-filosófico marxiano, estabelecendo a realidade empírica como objecto de investigação, utiliza um meio linguístico especial; a destruição logofóbica dos problemas filosóficos. Dentro do novo meio de expressão, nada se inverte; a gnose hegeliana é traduzida em especulação pseudológica. A inversão surge numa terceira fase em que o resultado das duas primeiras operações é construido como uma interpretação dos reinos do ser a partir da base da hierarquia ontológica.

Para analisar esta tarefa de Marx, seria aqui necessária uma filosofia da cultura. Seria preciso explicar: 1)A natureza dos fenómenos culturais; 2) Que tais fenómenos podem ser considerados a partir de uma base da existência, por exemplo, a matéria; 3 ) E finalmente, o que é esta base da existência. Marx só fornece a fórmula de que a consciência é condicionada pela existência. Surgem ainda passagens sobre "ideologia". KPO pp.lv e ss. As revoluções começam na esfera económica e arrastam a superestrutura. Se isso significa que o conteúdo da cultura mais não é senão luta pelo domínio da esfera económica, não é verdade.

Em relação à base do fundo da existência, veja-se a nota 89 de O Capital, 1 sobre a tecnologia. A história dos elementos produtivos é mais relevante e mais fácil que a história das plantas e dos animais de Darwin porque, como afirma Vico, foi o homem que fez a história do homem. A tecnologia revela o comportamento do homem perante a natureza e portanto as concepções mentais, geistigen Vorstellungen, que delas provêm. É também mais fácil encontrar o cerne terreno das religiões, do que ir pelo caminho oposto e desenvolver as formas tornadas celestiais,"verhimmelten Formen" fora da relação com a vida. Um dos defeitos do naturwissenschaftenlichen Materialismus é excluir o processo histórico. Marx critica pois a história psicologizante que se reduz aos motivos terrenos das religiões. As religiões têm motivos económicos, como se lê no Anti-Dühring, p.31: é preciso um princípio. E são estas as ideias que abalam o mundo?

Publicado originalmente em: http://www.olavodecarvalho.org/