Original: Brave New WorldAutor: Huxley, Aldous Leonard.
Assunto: Romance (distópico)
Editora: Globo
Edição: 2ª
Ano: 2001
Assunto: Romance (distópico)
Editora: Globo
Edição: 2ª
Ano: 2001
Páginas: 310
Nota: Admirável Mundo Novo não é uma obra de ficção distópica, mas um relato do programa de eugenia mundial. Fato denunciado pelo próprio autor antes de sua morte.
Admirável Mundo Novo é o retrato sombrio e profético da tirania com face humana. Escrito em 1931 e publicado em 1932, este livro é uma antevisão de um futuro no qual o domínio quase integral das técnicas e do saber científico produz uma sociedade totalitária e desumanizada. Esta ficção científica surpreende pela clareza do texto, pela lucidez de Huxley e pela atualidade das questões levantadas.

Narra um hipotético futuro onde as pessoas são pré-condicionadas biologicamente e condicionadas psicologicamente a viverem em harmonia com as leis e regras sociais, dentro de uma sociedade organizada por castas. A sociedade desse "futuro" criado por Huxley não possui a ética religiosa e valores morais que regem a sociedade atual. As crianças têm educação sexual desde os mais tenros anos da vida. O conceito de família também não existe.
A maior parte da trama passa-se em Londres, seiscentos anos no futuro (632 d.F). O mundo foi dominado pelos controladores mundiais, cujo objetivo é assegurar a estabilidade e felicidade sociais, tal qual a apologia das esquerdas nos tempos atuais. Por causa disso, o conceito estruturador do regime é o utilitarismo, ou a maximização da felicidade geral da sociedade. O romance começa no Centro de Incubação e Condicionamento de Londres Central, um centro de produção de seres humanos, cuja quantidade é mantida num patamar “ideal”.
O livro retrata a sociedade imaginada por Huxley, onde “todos pertencem a todos”, num esforço para erradicar o individualismo. Todos são felizes e perfeitos... A Sociedade "perfeita" é mostrada por Huxley através da história de uma jovem típica, pertencente a uma das castas altas, que, em uma crise existencial, conhece uma reserva de selvagens e particularmente um selvagem (a reserva é uma alegoria para o mundo real). As duas personagens representam o antagonismo entre a nova e a velha sociedade, os novos e os velhos padrões. Ela vive em uma sociedade formada por pessoas pré-programadas genética e psicologicamente para desempenhar um papel social e gostar deste, sem questionar ou desejar, nem mais nem menos, simplesmente ser o que lhe foi designado pelo Estado, mantenedor do Bem-estar geral. O selvagem, por outro lado, vive em um mundo cheio dos antigos valores e costumes, dogmas e tradições.
É uma forma de criticar a substituição das pessoas por máquinas, de uma forma diferente: substituindo o lado humano, os sentimentos e emoções, por sensações pré-programadas. Os seres humanos são produzidos em linhas de montagem como os produtos genéricos e condicionados a aceitar uma série de dogmas sociais, são padronizados e, no entanto continuam presos a dogmas, embora estes mudem de uma sociedade para outra, sendo atribuídos de formas diferentes: por um lado, através da educação infantil e, por outro lado, através do condicionamento hipnopédico (em outras palavras, adestramento).
As crianças são criadas em centros de condicionamento do Estado. A figura de pai e mãe é completamente abolida. O lar é descrito como um local doentio, mal cheiroso e palco de intimidades e emoções. Os dominadores substituíram a cultura com campanhas contra o passado, destruição de monumentos e livros e banindo a reprodução sexual. A religião, particularmente o cristianismo, foi transformada em um culto a Henry Ford. Para enfatizar a produção em massa, todas as cruzes foram cortadas para a forma de “T”. Além disso, havia sido inventada uma nova droga chamada soma, com os mesmos efeitos da cocaína e heroína, mas sem efeitos colaterais. O soma garante que as pessoas passem mais tempo alucinando do que pensando e, por causa disso, é distribuído gratuitamente pelo governo.
Impossível não ver no Estado descrito em "Admirável Mundo Novo" o Estado totalitário, socialista ou comunista, ambos ditatoriais e avessos a qualquer outra possibilidade para a sociedade.
Setenta e oito anos depois que o livro foi escrito como criticar o Admirável Mundo Novo quanto à sua utilização do soma quando não estamos muito longe disso, ao utilizar Prozac? Criticar a sua alienação quando nos deixamos imbecilizar pela televisão, cinema, vídeo, músicas e revistas das quais nos lembraremos por apenas uma estação? A sociedade atual não é tão consumista e manipuladora quanto a descrita por Huxley no início do século passado? Não somos também nós, como os seus personagens fictícios, crianças grandes, brincando com brinquedos cada vez mais caros e sofisticados? Crianças que fogem dos problemas, lêem revistas e assistem programas que nos dizem o que vestir, o que comprar e como agir? As gerações atuais já não conhecem os efeitos hipnopédicos da TV e do rádio?
Muitos já tomam soma (o que é o soma senão o ópio do povo, os estádios de futebol, as danceterias, os shows alucinógenos, os filmes de péssima qualidade e, por que não dizer, a maconha e a cocaína?).
No entanto, é sempre bom ressaltar também o outro lado: aquilo que ainda temos de mais precioso, algo que as pessoas do "Novo Mundo" já perderam: humanidade, espiritualidade e liberdade. No mundo utópico apresentado pelos esquerdistas totalitaristas, aqueles que ousam pensar são alvos de preconceitos e perseguições. No mundo real, as coisas já não são bem assim: aqueles que pensam diferente são até recompensadas. O pensar é incentivado, ao menos em ALGUMA parcela da população, enquanto que no "Novo Mundo", ele é cortado antes mesmo de a criança nascer. No "Novo Mundo", cada pessoa é especializada como uma formiga, vivendo unicamente para exercer a profissão a que foi destinada antes de nascer e tendo sido condicionada para gostar disso. Sem dúvida, isso resolve o problema do desemprego. Mas a que preço? O preço da liberdade de escolha, da liberdade de querer ser alguém, de querer crescer na vida. A vida individual, uma das coisas mais valiosas que o homem conquistou com o seu desenvolvimento evolutivo, é anulada pela vida coletiva; perde o sentido. As pessoas deixam de ser seres humanos e passam a ser máquinas superespecializadas para exercer uma determinada atividade. Isso as torna tão dependentes dos outros que elas deixam de existir sem alguém por perto. Daí vem a ansiedade por locais "cheios de gente" de todos. Eles sentem-se seguros, protegidos, o seu instinto não foi anulado, continua ali, dando seus sinais, ainda que, de certa forma, alterado.
Por fim, mas não menos importante, é preciso ressaltar mais uma grande mensagem de Aldous Huxley: o Homem ainda faz parte da Natureza. Ele não pode anulá-la, pois ela vive dentro dele próprio. Ele ainda pode voltar a ser o que era antes de se "destacar" de seus "irmãos", se é que chegou a ser.
No Brasil, onde o Estado já está divinizado com o beneplácito da CNBB marxista, a única coisa que ainda não foi destruída pela esquerda psicopata, foi a reprodução sexual.
PREFÁCIO DE OLAVO DE CARVALHO
Se houve no século XX um escritor que nunca cedeu ao cansaço e
ao tédio, que conservou até o fim um apaixonado interesse pela vida e pelo
conhecimento, que não cessou de se elevar a patamares cada vez mais altos de
compreensão, até chegar, em seus últimos dias, às portas de uma autêntica
sabedoria espiritual, esse foi Aldous Huxley.
Símbolo e resumo de sua trajetória vital é a luta de décadas que
ele empreendeu contra a cegueira. A doença que aos 17 anos reduziu sua visão a
aproximadamente um décimo do normal não foi para ele, como provavelmente o
seria para muitos outros escritores numa era de egocentrismo e auto piedade,
ocasião de especulações vãs sobre a maldade do destino. Foi a oportunidade de
um mergulho nas fontes corporais e espirituais da percepção, mergulho que
acabou por fazer dele o autor de reflexões epistemológicas bem mais
interessantes do que muitas obras de filósofos acadêmicos sobre o assunto.
Algumas dessas reflexões surgiram ao longo de sua experiência com os exercícios
do Dr. Bates, um despretensioso oftalmologista norte-americano cujo sucesso na
cura de Huxley veio a tornar célebre. O Dr. Bates era um inimigo dos óculos.
Achava que todo olho doente tem momentos de sanidade que são estrangulados pela
camisa-de-força de uma lente de grau fixo. Muito de sua técnica consistia
apenas em restaurar no paciente a curiosidade visual e o amor à luz. Talvez ele
nunca tenha atinado com a formidável importância filosófica de sua técnica. Mas
Huxley, à medida que recuperava a visão graças aos exercícios de Bates, ia
fazendo duas descobertas filosóficas fundamentais. A primeira delas estava
sendo elaborada simultaneamente, sem que Huxley o soubesse, pelo filósofo basco
Xavier Zubiri, uma das mais poderosas mentes filosóficas deste e de muitos
séculos. Segundo Zubiri, não existe aquela coisa kantiana de dados sensíveis
brutos, caóticos, colhidos pelo corpo e sintetizados na mente segundo padrões a
priori. A percepção humana é, inerentemente, percepção intelectiva ou, na
fórmula zubiriana, “inteligência senciente”. Isto tapava, de um só golpe, o
abismo que três séculos de idealismo filosófico haviam cavado entre
conhecimento e realidade. “Realidade”, diz Zubiri, é o aspecto formal que o ser
oferece à percepção humana. Não há uma “coisa em si” a ser apreendida para além
da percepção, porque, precisamente, o que o ser oferece à nossa percepção é o
seu “em si” e nada mais, ou, como diria Zubiri, aquilo que ele é “de suyo”, de
seu, de próprio, de real.
Huxley, que nunca ouviu falar de Zubiri (as obras do filósofo só
vieram a difundir-se no mundo a partir da década de 70, após a morte de
romancista), chegou, pela experiência pessoal da luta pela visão, a conclusões
similares. A “arte de ver” (The Art of Seeing, 1943) não consistia no esforço
interrogativo que, segundo Kant, equiparava o buscador do conhecimento ao juiz
de instrução que inquire ativamente a testemunha em vez de deixá-la falar o que
quer. Bem ao contrário, consiste numa aceitação passiva e gentil daquilo que as
coisas, “de suyo”, queiram nos mostrar. A redução da libido dominandi
intelectual às suas justas proporções fazia do ato de ver uma devoção
contemplativa ante a realidade do mundo.
A segunda descoberta filosófica de Huxley, no curso de seus exercícios
ópticos, filia-o a uma tradição ainda mal conhecida no Ocidente de hoje, e
praticamente desconhecida no mundo acadêmico do seu tempo. A natureza do mundo
objetivo, nas suas experiências, revelava-se essencialmente como luz -- luz no
sentido físico, sustentada, porém, desde o íntimo, pela luz espiritual. A
ativação desta última, no sujeito cognoscente, despertava a sua contrapartida
objetiva sob a forma da luz inteligível que se revelava nas coisas vistas,
simultaneamente à sua revelação pela luz física. A meditação deste ponto
remonta à “filosofia iluminativa” de Shihaboddin Sohrawardi (1155-91) filósofo
persa cujas descobertas só encontraram, no Ocidente, um eco acidental e
longínquo em observações casuais de Robert de Grosseteste (c. 1170-1253). Huxley
soube algo de Sorawardi, anos depois, pois menciona-o de passagem em algum
ensaio. Mas, na época em que fazia as experiências relatadas em The Art of
Seeing, já estava mergulhado, sem saber, numa atmosfera inconfundivelmente
sohrawardiana.
Esses pontos já bastam para mostrar a intensidade filosófica do
mundo interior de Aldous Huxley, o que o coloca num patamar intelectual bem
superior ao da média dos romancistas do seu tempo.
Mas a especulação vivenciada dos mistérios da percepção levou-o
a algumas interessantes experiências no campo da técnica ficcional. Em
“Contraponto” (1923), ele esboça a reconstituição da unidade de uma atmosfera
emocional pela justaposição de detalhes aparentemente separados. Isso poderia
fazer pensar, à primeira vista, na síntese kantiana. Mas, lida com mais
atenção, cada cena do romance já traz em si, como em miniatura, o tônus
emocional do conjunto. Não se trata, pois, da unificação intelectual de um
significado a partir de detalhes insignificantes, mas sim de uma mesma realidade
vista em dois planos: de perto e de longe. Mais que “dados” atomísticos
kantiano, os episódios de “Contraponto” são mônadas de Leibniz, cada uma
refletindo, desde o seu ângulo próprio, a forma do conjunto.
Algo dessa técnica repete-se nas primeiras páginas do “Admirável
Mundo Novo”. Flashes da produção de bebês in vitro, do doutrinamento de
crianças para a cidadania padronizada, das diversões programadas como parte da
disciplina civil, vão recompondo, aos poucos, a imagem global de um mundo do
qual a liberdade de escolha foi excluída e onde as criaturas repousam
confortavelmente na submissão hipnótica à ordem estatal perfeita. A sociedade
futura aí descrita, que o autor situa no século VII d. F. (“depois de Ford”, ou
às vezes “depois de Freud”) é aparentemente uma utopia, no sentido definido por
Goethe: “Uma série de idéias, pensamentos, sugestões e intenções, reunidos para
formar uma imagem de realidade, embora no curso ordinário das coisas
dificilmente venham a se encontrar juntos.” Um universo assim construído teria
uma constituição nitidamente kantiana: síntese mental de dados que, na
realidade, se encontram dispersos. Mas essa não é, definitivamente, a estrutura
do romance de Huxley. Nenhum dos elementos da Nova Ordem Mundial que ele nos
apresenta pode ser concebido separadamente. Não se pode controlar
administrativamente as emoções humanas sem a ajuda química (as pastilhas de
soma), nem habituar as multidões à satisfação bovina de uma auto-hipnose
permanente sem controle laboratorial de suas predisposições genéticas; nem,
muito menos, fazer tudo isto ao mesmo tempo na escala limitada de um Estado
nacional, sem o controle simultâneo de todo o globo terrestre. Mundialismo,
controle genético, adestramento comportamental e intoxicação coletiva não são dados
soltos para a mente construir com eles uma utopia: são órgãos solidários e
inseparáveis de um mesmo e único sistema. Onde quer que apareça um deles, os
outros o seguirão, mais cedo ou mais tarde. A lógica deste romance imita e
condensa a lógica da História.
Por isso mesmo o “Admirável Mundo Novo” é menos uma utopia, uma
especulação sobre um futuro possível, do que a percepção imediata do nexo
interna por trás de uma pluralidade de modas e escolas de pensamento que
floresciam na época em que o romance foi escrito, e que constituem a matriz
unificada, não somente do mundo possível no século VII d. F., mas do mundo em
que vivemos hoje. Huxley, com efeito, nada inventou. Tudo o que fez foi
perceber a unidade subjacente às idéias dominantes do seu tempo, que geraram
nosso modo de existir atual. A atmosfera em que vivemos foi, de fato,
determinada pelas concepções de Lenin e Ford, Margareth Mead e H. G. Wells,
Malinowski e Pavlov. As referências, sutis ou abertas, a estes e a muitos
outros “maîtres à penser” da década de 20 abundam nas páginas deste livro, que
portanto pode ser lido menos como uma utopia no sentido goetheano do que como
um diagnóstico da unidade de sentido por trás de tendências de pensamento que
se ignoravam umas às outras no instante mesmo em que, às cegas, concorriam para
erguer as paredes de um mesmo edifício: o edifício da Nova Ordem Mundial.
O Sr. Wells, um autor menor que acabou por ser quase esquecido,
é mencionado de passagem neste livro como um dos principais construtores da
Nova Ordem. Passados oitenta anos, poucos observadores da realidade de hoje se
dão conta de quanto ele contribuiu para formá-la, coisa que no entanto já
estava óbvia para Aldous Huxley em 1931. O Sr. Wells, no livro “A Revolução
Invisível” (1928), foi o primeiro a apresentar o projeto integral de uma Nova
Ordem, que parece ter inspirado de algum modo os Srs. Clinton e Blair. Que
feito de tão magna importância fosse obra de um autor que representa mais do
que ninguém a mediocridade satisfeita do progressismo moderno, é coisa que não
deve nos estranhar, pois a Nova Ordem, com seus clones, seus tribunais mundiais
e seu controle da internet, não é outra coisa senão a mediocridade
materializada em escala global -- o mundo onde o Sr. Wells se sentiria tão à
vontade quanto Bouvard e Pécuchet.
As contribuições menores não devem porém ser desprezadas. Nossas
concepções atuais sobre o prazer sexual ilimitado como um direito a que o
Estado deve assegurar o acesso igualitário das massas não teriam sido possíveis
sem o relativismo antropológico de Margaret Mead. Se enquanto cientista ela foi
tão precária quanto é minguado o talento literário do Sr. Wells, nada mais
justo: somente a pseudociência e a pseudoliteratura podem gerar mundos. Sua
função, como já dizia Karl Marx, não é a de compreender o real, mas a de
mudá-lo. Mas as idéias não precisam ser inteiramente falsas para esse fim.
Basta que sejam infladas para além de seus limites razoáveis. Pavlov, por
exemplo, descreveu com acerto a psicologia dos cães. O homem não pode ser
compreendido integralmente à luz da psicologia canina, mas pode ser
integralmente manipulado desde a parte canina do seu ser, transformando-se em
algo praticamente indiscernível de um cão, o que dará à psicologia de Pavlov,
na prática, um alcance que ela jamais poderia ter em teoria. De modo análogo,
todos podemos ser levados a comportar-nos como pacientes psicanalíticos,
militantes proletários ou peças de uma linha de produção, dando uma espécie de
“segunda realidade”, como diria Robert Musil, às ideologias de Freud, Marx e
Henry Ford. Depois disso, contestar essas teorias se tornaria tão difícil
quanto tentar provar o valor da vida a um suicida que, tendo saltado do décimo
andar, já se encontrasse à altura do sexto ou quinto. A dificuldade que os
personagens deste livro encontram para perceber a irrealidade do mundo social
que as rodeia é dessa mesma índole: elas constroem essa irrealidade a cada
instante, com suas próprias vidas, e se aprisionam nela no ato mesmo de tentar
contestá-la em pensamento.
A unidade maciça do pesadelo descrito neste livro não é um
produto da mente, construido com indícios esparsos, um vulgar “silogismo
imaginativo” eisensteiniano em que, dadas duas imagens reais, o espectador
contrói uma terceira, fictícia, e nela crê. É antes a visão real da unidade da
atmosfera cultural dos anos vinte e trinta condensada em imagens e projetada --
erroneamente -- num século futuro. Erroneamente, digo eu, porque o próprio
Aldous Huxley, em 1959, confessava seu erro de datas: “As profecias feitas em
1931 estão para realizar-se muito mais depressa do que eu calculava”, afirmou
ele em Brave New World Revisited, uma atemorizante coletânea de ensaios sobre
lavagem cerebral, persuasão química, hipnopédia, influência subliminar e outras
técnicas de manipulação comportamental que, previstas para o século VII d. F.,
já estavam prontas para o uso na segunda metade do século XX. Passado mais meio
século, porém, já transcendemos a época das descobertas técnicas e entramos, em
cheio, na da sua aplicação rotineira em escala mundial. Uma boa descrição
parcial desse estado de coisas encontra-se no livro de Pascal Bernardin,
Machiavel Pedagoge ou le Ministère de la Réforme Psychologique (Paris, Éditions
Notre-Dame des Grâces, 1998), que analisa as técnicas educacionais hoje
padronizadas em todo o mundo sob os auspícios de governos e de prestigiosos
organismos internacionais. As conclusões do seu exame são duas. Primeira, a
educação das crianças no mundo de hoje despreza a sua formação intelectual e se
dedica quase que inteiramente ao adestramento comportamental dos perfeitos
cidadãozinhos da Nova Ordem Mundial. Segunda: as técnicas usadas para esse fim
pouco têm a ver com o que que se denominava tradicionalmente “pedagogia”, mas
se constituem essencialmente de manipulação pavloviana. Que isso ocorra
simultaneamente a experimentos de clonagem humana, à formulação de uma ética
padronizada para abolir todas as diferenças culturais e religiosas, à
instauração de um poder médico global incumbido de receitar e vetar condutas a
pretexto de higiene e saúde, à criação de tribunais mundiais para impor à toda
a humanidade o direito penal de Wells, Bouvard e Pécuchet -- nada disso é
coincidência, nada disso é síntese mental de dados esparsos. É a unidade de um
sistema de erros, cujas sementes Aldous Huxley identificou em 1931 e cujo
crescimento ultrapassou, em velocidade, os seus mais sombrios diagnósticos.
No entanto, o mundo em que vivemos ainda não se parece, no seu
todo, com o Admirável Mundo Novo. A diferença principal é que neste os
“selvagens”, isto é, as pessoas que rejeitavam a existência antisséptica na
sociedade perfeita e continuavam presas de hábitos bárbaros como ler a Bíblia,
rezar e educar seus próprios filhos em vez de entregá-los ao Estado, se
encontravam isoladas geograficamente, vivendo em reservas a milhares de
quilômetros dos centros civilizados. No mundo de hoje, elas vivem soltas nas
grandes cidades, misturadas aos seres humanos normais que só acreditam nos
noticiários da TV e que entregam não só seus filhos como também seus pais à
guarda do Estado. Por isto a vida moderna não tem a uniformidade tediosa das
cidades de Huxley.
Mas isso não quer dizer que, no domínio da estrutura social, ao
contrário do que acontece no da tecnologia, o cumprimento da profecia esteja
atrasado. Nas últimas quatro décadas, a elite bem-pensante inventou meios tão
eficazes de isolar psicologicamente, culturalmente e socialmente os
indesejáveis, que separá-los geograficamente tornou-se uma despesa
desnecessária. A presença de um crente nas altas cátedras universitárias ou nos
cargos de destaque do jornalismo, por exemplo, tornou-se tão inconcebível, que
todos os selvagens que poderiam ambicionar esses postos recuam espontaneamente
para os bas-fonds da vida social, deixando o palco inteiramente à disposição
dos bons cidadãos. A secretária de Estado Madeleine Albright foi até explícita:
qualquer americano que contribuísse regularmente para uma igreja e se
preparasse ativamente para o Juízo Final se tornariam um virtual candidato a
ter sua vida vasculhada pelo FBI. As reservas de “selvagens” não estão nos
confins da Terra como no romance. Elas estão entre nós.
Nas suas últimas décadas de vida, Aldous Huxley adotou
decididamente uma escala de valores “selvagem”. Mergulhou no estudo das literaturas
sapienciais e místicas, adquirindo uma antevisão daquilo que Fritjof Shuonn
viria a chamar “unidade transcendente das religiões”, tão diferente do
ecumenismo burocrático de hoje quanto as visões de Sta. Teresa ou Jacob Boehme
diferiam da leitura de uma circular da CNBB. Com isso, tornou-se estranho e
incompreensível, simultaneamente, aos materialistas da linha Wells e aos
paladinos de ortodoxias exclusivistas. Aventurou-se mesmo numa tentativa --
falhada -- de descobrir nas drogas alucinógenas a rota de fuga para fora da
percepção padronizada. Mas a experiência fracassada não foi estéril. Se não
abriu para quem quer que fosse “as portas da percepção”, despertou Aldous
Huxley para a temível realidade da manipulação química do comportamento, que
ele denuncia corajosamente em Brave New World Revisited, e para os aspectos
falazes e ilusórios da democracia, que ele caricatura impiedosamente em seu
último romance, A Ilha, espécie de contrapartida dialética do Admirável Mundo
Novo.
Da observação microscópica do mecanismo da percepção até a
intuição global dos rumos da história humana, o olhar de Huxley jamais perdeu
de vista a unidade do real e, em conseqüência, o senso da integridade humana,
que tantos romancistas, seus contemporâneos, cedendo à suprema tentação, não
fizeram senão dispersar numa poeira de estilhaços.
Nenhum de seus livros dá conta integral da riqueza de sua
experiência do mundo. Mas em nenhum deles está ausente a tensão entre o apelo
unificante do alto e as brutais forças centrífugas que tentam dissolver a
unidade da consciência para mais facilmente amoldá-la à mera uniformidade
exterior de um mundo forjado. Voltar a si, reconquistar perenemente o senso da
verdadeira unidade e, com isto, redescobrir a luz do espírito em seus reflexos
no mundo exterior -- eis o sentido da vida e da literatura de Aldous Huxley.
Poucos escritores, no século XX, souberam colocar a ocupação literária a
serviço de finalidade tão alta e tão nobre. Por isto a obra de Aldous Huxley,
malgrado seu múltiplos defeitos, sobreviverá. Ela tem o interesse permanente de
tudo aquilo que se volta para “a única coisa necessária”.
FILME: ADMIRÁVEL MUNDO NOVO (LEGENDADO)
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