"Sou um só, mas ainda assim sou um. Não posso fazer tudo, mas posso fazer alguma coisa. E, por não poder fazer tudo, não me recusarei a fazer o pouco que posso"

domingo, 11 de dezembro de 2011

MEMÓRIAS DO SUBSOLO

Título original: Zapíski Iz Podpólia
Autor: Fiódor Dostoievski (1821-1881)
Tradução: Boris Schnaiderman
Editora: 34
Assunto: Novela
Edição: 5ª
Ano: 2004
Páginas: 152

 
Sinopse: Publicado em 1864 na revista literária Época, fundada por Dostoiévski e seu irmão Mikhail, a novela nos traz um homem desencantado, funcionário da baixa burocracia russa, que mora com o empregado Apólon num modesto apartamento no subsolo de um edifício. Angustiado e pessimista, esse homem sem nome nos revela, por sua própria voz, um absoluto desprezo pelo mundo a sua volta e, ao mesmo tempo em que escolhe a solidão, parece, em certos momentos, amargurar-se ainda mais com ela.

Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável.

Aqui ressoa a voz do “homem do subsolo”, a personagem-narrador que, à força de paradoxos, investe ferozmente contra tudo e contra todos – contra a ciência e contra a superstição, contra o progresso e contra o atraso, contra a razão e a desrazão –; mas investe, acima de tudo, contra o solo da própria consciência, criando uma narrativa ímpar, de altíssima voltagem poética, que se afirma e se nega a si mesma sucessivamente.

Comentários: Memórias do subsolo inaugura uma nova fase na obra de Dostoiévski e na literatura ocidental. No âmbito circunscrito à produção do maior romancista russo de todos os tempos, essa narrativa singular antecipa a maturidade do escritor.

Até a publicação desta novela, Dostoiévski era um escritor dotado de aguda percepção social, cujos “ensaios fisiológicos” já traziam uma apreensão do caráter fantástico da realidade. Mas é nesta obra – traduzida pelo ensaísta Boris Schnaiderman – que o escritor materializa sua visão abissal dos conflitos morais, psicológicos e sociais, que se interpenetram caoticamente de modo a destacar, como única medida do mundo, o desejo humano de salvação diante da morte e da desrazão.

A novela é dividida em duas partes. Na primeira, “O subsolo”, o anônimo narrador destila amargura e escárnio contra as almas [almas no conceito russo são pessoas] idealistas de seu tempo, que confiam ingenuamente na subordinação do homem às leis da natureza como forma de alcançar um estado de harmonia social e espiritual. Para o homem subterrâneo, esses “palácios de cristal”, “essas sutilezas do belo e sublime” são quimeras do “homem de ação”, que reduz os anseios da alma ao bem-estar material, segundo o credo positivista. Por isso, ele preferirá sua existência de zombaria e torpeza, de tédio e inação, a “consciência hipertrofiada” de quem conhece a essência irredutível do ser humano.

O monólogo inicial de Memórias do subsolo proporciona ao leitor momentos impagáveis de humor negro e anarquismo metafísico. Mas a mensagem desse habitante das catacumbas da existência é clara: utopistas como Tchernichévski ou Fourrier (freqüentemente aludidos ao longo do texto) são, na verdade, avatares do “Grande Inquisidor” de Os Irmãos Karamazov, que oferece aos homens segurança e conforto ao preço do aniquilamento de seu livre-arbítrio e de sua torturada paisagem interior.

Em Memórias do subsolo, todavia, Dostoiévski ainda não atingira a dimensão apocalíptica e regeneradora da sua última fase. Assim, na segunda parte da novela, “A propósito da neve molhada”, a narrativa das peripécias do homem subterrâneo leva da galhofa à tragédia. A negatividade do narrador revela seu lado sinistro quando enreda a prostituta Liza em sua teia: o espetáculo da auto-degradação se transforma em crueldade; os anátemas contra o humanismo deságuam no desespero e no remorso. (Manuel da Costa Pinto)

No preâmbulo da obra, Dostoiévski nos explica a obra por meio de uma nota de rodapé:

Tanto o autor como o texto destas memórias são, naturalmente, imaginários. Todavia, pessoas como o seu autor não só podem, mas devem até existir em nossa sociedade, desde que consideremos as circunstâncias em que, de um modo geral, ela se formou. O que pretendi foi apresentar ao público, de modo mais evidente que o habitual, um dos caracteres de um tempo ainda recente. Trata-se de um dos representantes da geração que vive os seus dias derradeiros. No primeiro trecho, intitulado 'O subsolo', o próprio personagem se apresenta, expõe os seus pontos de vista e como que deseja esclarecer as razões pelas quais apareceu e devia aparecer em nosso meio. No trecho seguinte, porém, já se encontrarão realmente 'memórias' desse personagem sobre alguns acontecimentos da sua vida.” [Nota de F.M. Dostoiévski]

Análise do sentido da história: Esta é uma história irônica, com conotações satíricas em boa parte da narrativa. Esta história, regra geral, foi muito mal interpretada, porque a ironia não fica evidente o tempo todo e as traduções mal feitas se encarregaram de estragá-la mudando o tom da história. Cada pessoa que lê esta obra tem a sua interpretação própria. Nietzsche, ao ler este romance pela primeira vez, achou-o maravilhoso porque na sua visão o que o “homem do subsolo” representa, é o “super-homem” de sua criação, que ele acha que poderia existir. Portanto, centenas são as interpretações do sentido desta novela de Dostoiévski. Otto Maria Carpeaux, num dos primeiros ensaios que publicou no Brasil, disse o seguinte: “Existem poucos escritores cuja obra tenha sido tão tenazmente mal compreendida como a de Dostoiévski”.

O primeiro passo para interpretação da história é perceber que o “homem do subsolo” tem uma consciência hiper-desenvolvida e mais aguçada do que as demais personagens da história. À primeira vista, parece ser uma coisa boa e positiva, mas quando se pensa um pouquinho melhor, começa-se a acreditar que essa consciência hiper-aguçada que o “homem do subsolo” tem, deve ter alguma coisa má, porque ele inviabiliza a própria possibilidade da vida humana. Ele, na medida em que não consegue fazer nada, não porque ele não queira, não porque esteja impedido por forças externas, ele se torna vítima de sua própria doença. A pior doença mental que existe é aquela que impossibilita viver. O sujeito que consegue trabalhar ou fazer alguma coisa, mesmo que de vez em quando, é uma pessoa normal assim como todos nós. A coisa começa ficar grave, quando o sujeito passa às 24 horas do dia olhando para a parede da casa dele. De certo modo é o caso aqui, o “homem do subsolo” porque ele é incapaz de fazer qualquer ação. Portanto, há alguma coisa errada com essa consciência aguçada do “homem do subsolo” que o paralisa.

O problema do “homem do subsolo”, é que ele não consegue obter a devida retribuição social, da qual se considera merecedor, por conta de uma vaidade desmesurada que o faz acreditar que ele é muito mais do que verdadeiramente é. A sua consciência é uma espécie de ego fora de controle. Ele se considera superior a todos os outros. Está investido de soberba propriamente dita, que os gregos denominavam de Hübris que é o defeito mais grave que um ser humano possa ter: uma visão vaidosa e fantasiosa de suas próprias capacidades. Portanto, ele tem-se numa conta tão desmesuradamente alta, que ele vê no mundo uma incapacidade de retribuição que ele acredita ser merecedor.

Deixo no ar duas perguntas aos leitores: Quantos “homens do subsolo” estão a nossa volta? Qual a certeza que temos de não sermos, também, um “homem do subsolo”? Aristóteles dizia que, tirando as acidentalidades do ser humano, a essência humana é a mesma em todo lugar.

O “homem do subsolo” é prisioneiro da idéia de ser detentor de um atributo extraordinário que julga fazê-lo superior a todos os outros seres humanos. Esse é o problema central que dá início a nossa história.

O “homem do subsolo” acaba se tornando rancoroso porque o mundo é valorizado pelo homem de ação. Em contrapartida, há uma baixa valorização do homem de pensamento. Ele próprio, no enredo da história, relata que quando ia para a escola era isolado pelos colegas, porque ele sabia ler livros que os colegas não tinham a menor idéia do que tratavam. Ele tinha uma superioridade intelectual a de todo mundo e reconhece que tem culpa de ser mais inteligente do que os outros. Assim, ele não tem no mundo de ação o mesmo respaldo que a sua vaidade, inflada, espera que tivesse. Portanto, há aqui uma diferença de grau de reconhecimento. Essa é a origem do problema emocional do “homem do subsolo”.

Uma breve digressão dentro do contexto: O mundo real é o mundo das pessoas de ação. É o homem de ação que controla o mundo e age em função das aparências das coisas. Se perguntarmos às pessoas por que elas vivem, elas não têm a menor idéia disso. Elas têm uma idéia de que vivem de determinado modo, cumprindo as suas obrigações, indo para o trabalho, para o clube, freqüentando restaurantes, reservando algumas horas de laser, etc. Isso basta para elas. Não que isto seja moralmente errado, não se trata de censura às pessoas que são assim, mas a constatação um fato real e inegável. Tem gente que passa pela vida como o ônibus que não parou no ponto: direto. Não é todo mundo que tem a preocupação de compreender a vida e o mundo. Portanto, a maior parte das pessoas vive num grau de inconsciência muito grande. O homem de pensamento, por sua vez, vive num mundo completamente diferente desse. Ele tem a consciência da vida e da compreensão do mundo. O cuidado é não permitir ser dominado pela soberba.

Retornando. O “homem do subsolo” tem complexo de superioridade e que, logo em seguida, se transforma em complexo de inferioridade, porque ele que se acha grande coisa, mas é tratado pior do que os outros. Como ele tem a consciência hiper-aguçada, ele dá-se conta que existem limites à ação humana. Esses limites são as leis da natureza. Ora, se os homens fazem parte da natureza, é obvio que esses limites aplicam-se ao homem também. São limites de todos os tipos. Esses limites estabelecem que aquilo que fazemos na vida e, de alguma maneira, é programado pelas possibilidades naturais.

A diferença entre o homem de pensamento e o homem de ação está no fato de que o homem de ação age porque acha que não há limites e o homem de pensamento sabe que há limites. Este fato coloca a personagem no estado de tensão que se encontra. Ela pensa do seguinte modo: “Eu gostaria de fazer alguma coisa, mas tudo é inútil.

Se as leis da natureza [uso a frase como força de expressão, porque a natureza não tem leis; tem hábitos], ou seja, se os limites naturais estabelecem a regra de tudo, então não há mais culpa no ser humano, porque qualquer coisa que o ser humano faça, é como se fosse uma decisão que ele não tomou. O homem de ação não tem consciência disso, mas o homem de pensamento tem. Por isso que o homem de pensamento se recusa a fazer tudo, porque ele sabe que nada é possível, tudo é inútil e sem sentido, em última análise. Por isso que ele retarda as suas decisões e não faz nada de verdade. No entanto, ele gostaria de fazer alguma coisa. Esta contradição entre o que ele gostaria de fazer e a inutilidade de suas ações finais é o que o paralisa. Ele não sabe o que fazer.

No momento em que se decreta ou se admite que o comportamento humano é mecânico, automaticamente se destrói o livre-arbítrio, logo não há mais culpa. Não há possibilidade de justiça num contexto de falta de responsabilidade. Se não há responsabilidade pelos atos, não há mais justiça possível.

Essa idéia que a vida é uma coisa programada é a idéia que estava crescentemente em evidência no século XIX e é essa idéia que esse homem de “consciência maior” acaba incorporando a sua visão. Ele percebe esse desastre da existência humana, o fato que ela é determinada por forças que ele não controla, portanto o livre-arbítrio não é alguma coisa com a qual se possa contar ou que exista, em última análise.

O problema do homem de ação é que ele não tem a menor consciência disso, enquanto o outro tem consciência e está de algum modo desanimado e inviabilizado. Como o homem de ação não chegou a este ponto, ele consegue ser bobo à vontade, consegue ser auto-iludido o tempo todo. Por isso que o “homem do subsolo” o despreza e não quer ser o homem de ação; não que ser um bobo auto-iludido; mas, ao mesmo tempo, a alternativa que ele tem para si próprio é a alternativa de não fazer nada.

O “homem do subsolo” concentra o seu ataque nos “sonhos dourados” de Tchernichévski, um socialista utópico que dizia haver um palácio de ferro e outro de cristal, este representando metaforicamente a razão e o socialismo.

O “homem do subsolo” é contrário ao palácio de cristal da razão porque ele acha que o palácio de cristal é inútil. É contra a natureza humana, portanto não deve ser. Assim, o nosso homem é tecnicamente um anti-socialista, porque com a analogia que ele faz no livro, ser favorável ao palácio de cristal é ser favorável ao socialismo, e ele não quer isso, porque ele acha que isso não serve. Então, qual a alternativa? A alternativa que ele propõe é não fazer nada!

Portanto, estamos diante de dois males. Os dois males que Dostoiévski quer sanar nesta história maravilhosa é, de um lado, o niilismo de não fazer nada, e de outro, o socialismo revolucionário de Tchernichévski.

O “homem do subsolo” não tem valores morais ou consciência moral. Daí segue-se, segundo ele, que os homens temem a lei do determinismo, que estabelece que dois mais dois fazem quatro. O “homem do subsolo” teme a possibilidade de os humanos encontrarem esta razão, o palácio de cristal, porque neste caso não restaria nada para a humanidade procurar, nada mais para que lutar, nas mais para que viver. Ele explica a sua recusa em aceitar o palácio de cristal, pela simples razão de ele preferir viver no seu autodenominado subsolo.

O fim do fim, meus senhores: o melhor é não fazer nada! O melhor é a inércia consciente!”.

O objetivo de Dostoiévski é combater o niilista e o revolucionário socialista, tipos fortemente presentes na Rússia do século XIX e que mais tarde promoveram a Revolução Bolchevique de 1917.

O “homem do subsolo” representa o homem que não tem consciência moral. O que ele acredita, porque ele é inteligente, é que não é possível fazer o projeto do castelo de cristal. Isso, no entanto, não o transforma numa pessoa melhor. A não ser que ele, de alguma maneira, passasse pelo sofrimento moral. Ele passa pelo sofrimento moral, já no final da história, quando se dá conta da barbaridade que ele fez com a Liza. Esse sofrimento significa que neste momento começa a possibilidade de recuperação do homem.

Até o episódio da Liza ele não tem o sofrimento moral; ele tem uma raiva, uma implicância, etc. O sofrimento que ele tem até então é a sua vaidade ofendida. Ele é um “humilhado ofendido”.

Dostoiévski adora essa idéia do “humilhado ofendido”, porque ele sabe que a mente revolucionária nasce dessa gente. São os humilhados e ofendidos que fazem as revoluções. Basta lembrar os nossos tempos de faculdade: Quem dominava os diretórios acadêmicos? Eram invariavelmente os “humilhados ofendidos”. Essa era e ainda é a população média dos diretórios acadêmicos. Gente revolucionaria! Homens do subsolo.