"Sou um só, mas ainda assim sou um. Não posso fazer tudo, mas posso fazer alguma coisa. E, por não poder fazer tudo, não me recusarei a fazer o pouco que posso"

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O DIÁRIO DA FELICIDADE

Título original: Jurnalul fericirii
Autor: Nicolae Steinhardt
Tradução: Elpídio Mario Dantas Fonseca
Editora: É Realizações
Assunto: Biografias, Diários, Memórias e Correspondências
Edição: 1ª
Ano: 2009
Páginas: 544




Sinopse: O Diário da Felicidade, do monge ortodoxo romeno Nicolae Steinhardt (1912-1989), obra-prima da literatura romena, vinda a público em 1991, reúne em si tantos gêneros literários, que só a humildade do autor, aliada à sua profunda argúcia, poderia chamá-lo diário, e mais ainda da felicidade.
Momento central do livro é a conversão de Steinhardt, judeu de nascimento, ao cristianismo ortodoxo, através do batismo, realizado numa cela fétida e nas condições mais precárias das muitas prisões com grades e de consciência que o regime comunista, totalitário e sangrento, impõe a todos os que com ele não concordam.


Desse momento central, em flashes que vão ora para o futuro, ora para o passado, o autor faz retratos psicológicos de pessoas, interpreta passagens bíblicas, analisa trechos famosos da literatura ocidental, passa em revista as condições para ser cristão, concluindo que a principal delas é a coragem, mostra os estragos físicos e morais que o comunismo cometeu, e, em resumo, prova que o indivíduo, entregando-se a Nosso Senhor Jesus Cristo, é capaz de transcender o tempo e o sofrimento, chamando de felizes, interiormente, os momentos mais cruéis a que foi submetido em sua vida.

“Entrei cego na prisão (com vagos fulgores de luz, não acerca da realidade, mas interiores, fulgores autógenos de trevas, que fendem a escuridão sem dispersá-la) e saio com os olhos abertos; entrei mimado, luxento, saio curado de caprichos, afetações, presunções; entrei insatisfeito, saio conhecendo a felicidade; entrei nervoso, impaciente, ultra-sensível a bobagens, saio sereno; o sol e a vida diziam-me pouco, agora sei apreciar o menor pedacinho de pão; saio admirando mais do que tudo a coragem, a dignidade, a honra, o heroísmo; saio reconciliado: com aqueles com quem errei, com os meus amigos e inimigos, e, ora!: comigo mesmo.”

Nicolae Steinhardt

Comentários de Antonio Gonçalves Filho e Felipe Cherubin

O Diário da Felicidade, primeiro livro do monge ortodoxo romeno Nicolae Steinhardt publicado no Brasil, chega às livrarias para apresentar ao leitor um autor praticamente desconhecido. Steinhardt, no entanto, foi um dos pensadores mais intrigantes da cultura romena no século 20. Nascido em Bucareste, no seio de uma família judia, teve formação jurídica e logo se tornou crítico literário, manifestando profunda erudição. Steinhardt publicou pouco em vida. São textos que se resumem a análises literárias - com exceção de O Diário, sua obra-prima -, legado de uma vida que testemunhou o lado mais sombrio da cultura e da política romena.Em 1960, Steinhardt, interrogado pela Securitate, polícia ideológica do regime comunista romeno, recusou-se a colaborar como testemunha de acusação no processo movido contra um grupo de intelectuais, entre eles seu melhor amigo, o filósofo Constantin Noica.A sua recusa lhe custou a pena de 12 anos de trabalhos forçados, dos quais cumpriu 4. Convertido ao cristianismo na prisão, ele foi libertado em 1964, retirando-se para a vida no mosteiro.

O Diário da Felicidade foi traduzido por Elpídio Mário Dantas Fonseca, estudioso da obra de Steinhardt. A seguir, o tradutor fala, em entrevista exclusiva concedida ao Estado, sobre o livro.

Certas passagens do livro marcam uma mudança formal na linguagem de Steinhardt, considerando que num dos primeiros livros, À Maneira...de Cioran, Noica, Eliade, ele emulava o estilo de outros autores. Steinhardt buscava deliberadamente essa imitação ou um caminho próprio? Qual a sua conclusão sobre a sua construção estilística?

A construção estilística dele revela um autor com o completo domínio da língua. Então, propositadamente, procurei manter o nível elevado onde era elevado e o nível vulgar onde era vulgar. Algumas vezes ele emprega palavrões, expressões cruas, estão assim no romeno. Minha ideia foi a de manter em português a mesma construção original.

É difícil entender o enredo da obra e da vida de Steinhardt sem o conhecimento prévio de sua relação com Constantin Noica, amizade, aliás, que o levou à prisão. Que tipo de envolvimento ele teve com o filósofo?

Steinhardt e Noica foram alunos do filósofo romeno Nae Ionescu, além de terem feito parte de uma geração de grandes intelectuais - Emil Cioran, Eugène Ionesco e Mircea Eliade. Eles tinham uma grande amizade e o próprio Steinhardt considerava Noica um segundo pai, que o fez nascer de novo, apontando o mosteiro onde passou seus últimos anos. O crítico Virgil Bulat, aliás, considerava suas obras filosóficas complementares. A vida de Steinhardt está intimamente ligada à de Noica, um dos muitos intelectuais romenos que confrontaram o regime instalado em seu país e passaram a ser perseguidos, tendo obras censuradas. O simples fato de se falar mal do regime em reuniões levou o governo a infiltrar nelas espiões e controlar o movimento dessas pessoas. Isso provocou a prisão de 22 intelectuais em 1958, entre eles Noica. O último a ser encarcerado foi Steinhardt, de quem exigiram que fosse testemunha de acusação do grupo, mas, a despeito de ter sido traído por todos os amigos, não traiu ninguém.

O título do livro de Steinhardt é curioso. Por que O Diário da Felicidade? O que era a felicidade para Steinhardt? Como lidar com esse paradoxo da noção de felicidade num período de quase meio século de memórias marcado por fatos sombrios?

A felicidade para Steinhardt está fora do tempo, independente do ambiente circundante. Ele a encontra nas piores situações. Ela está fundamentalmente associada à conversão ao cristianismo. Steinhardt diz que são os anos mais felizes da vida dele, pois foi a prisão que o levou ao cristianismo, do qual vinha se aproximando havia muito tempo. Mas foi a possibilidade de morrer sem ser batizado que o levou à conversão.

O Diário da Felicidade recorre a um estilo literário confessional, em que a preservação da memória e a sinceridade são eixos que desenrolam a narrativa da biografia de Steinhardt. A que tradição ele estaria filiado?

Ele está numa linha direta com Santo Agostinho, isto é, a confissão cristã do abrir-se totalmente diante Daquele que tudo sabe para que possamos saber ainda mais acerca de nós mesmos.

É possível classificar O Diário como um testamento político, uma resposta contra o fenômeno do totalitarismo?

Sim. Steinhardt se concentrou em problemas que Constantin Noica, por exemplo, acreditava serem menores. Noica teve uma preocupação de resgatar o passado e dirigir-se ao futuro em suas aulas de filosofia, afastando-se de um mundo que o repelia, ao passo que Steinhardt não. Ele dá o testemunho diante das condições mais desfavoráveis, põe em prática aquilo que aprende da filosofia e da religião. Então, as palavras dele são cheias de sentido. Tudo o que ele diz nesse livro foi vivido, não foi da boca para fora.

Levando em conta o grande número de citações de filósofos e escritores existencialistas, em que medida o cristianismo de Steinhardt foi marcado pela leitura de Sartre ou Camus?

O que eu posso dizer, de forma geral, não só em relação ao existencialismo, mas a respeito de uma série de outras teorias e confissões religiosas do livro, é que o cristianismo, como mostrado por Steinhardt, é o verdadeiro cristianismo e não a caricatura com que estamos acostumados a ver. Ele analisa, apanha o que importa e rejeita o que não interessa.

Mas, como cristão, Steinhardt cita uma série de autores que poderiam, de certo modo, serem entendidos como seus antípodas, entre eles Jean Genet. Por que Steinhardt, curiosamente, se concentra em autores fora da tradição cristã?

Em relação a outras personagens que Steinhardt cita em O Diário da Felicidade, ele busca aquilo que em determinado momento expressa o comportamento cristão. Na verdade, o cristianismo abrange tudo isso - abrange e supera - então, não é simplesmente pelo fato de alguém ser anticristão que tudo aquilo o que ele diz será 100 % errado. É exatamente aquilo de colher o que importa. Essas pessoas não ficaram cegas para tudo. É o próprio divino que fala com cada um de nós. É isso que Steinhardt identifica nessas pessoas.

Steinhardt, ao longo de sua vida, esteve diante de pelo menos duas grandes ameaças: primeiro, o antissemitismo por causa de sua origem e o comunismo romeno. Como isso o afetou?

Em relação ao antissemitismo, Steinhardt, ao entrar no mosteiro, escreve uma pequena autobiografia na qual diz que não sentiu de perto esse preconceito já que o pai, engenheiro e herói da 1ª Guerra, era o que se chamava de judeu de segunda classe - havia separações nessa época, sendo os judeus de primeira classe os grandes industriais, e os de segunda classe, profissionais liberais. Então, ele não sentiu o antissemitismo, ainda mais pela proximidade da família dele com cristãos ortodoxos - na verdade, ele passou a sentir que era repelido pela comunidade judaica após sua conversão ao cristianismo. No caso do comunismo romeno e do totalitarismo em geral, ele tem um livro em que mostra quando começam os sinais da corrupção do Direito. Steinhardt identifica isso no fim do século 19, na Sorbonne, produzindo um livro para repudiar essas novas tendências do Direito à luz do Direito Constitucional tradicional.

Em que linha filosófica você colocaria o trabalho de Steinhardt?

Numa linha direta socrática com um ponto alto em Santo Agostinho, no sentido de ser um pensador que retoma a filosofia e passa a vivê-la, colocando em choque concepções que antes eram tidas como certas, ou seja, a filosofia tomada a partir da vivência real e concreta - aquela que está em busca da sabedoria.

Embora Steinhardt seja um monge, ele tem uma forte ligação com a modernidade, apresentando em seus textos considerações sobre ciência e tecnologia. Como ele se relaciona com elas?

Esse é um lado que foi esquecido por alguns cristãos hoje em dia, do papel do cristianismo na formação do Ocidente, e especificamente a Igreja Católica, que perdeu a hegemonia cultural na modernidade. Eles deixaram de estar a par daquilo que acontecia, de serem sacerdotes, não só do ponto de vista ritual, mas também intelectual. A tecnologia e as ciências nunca podem ser contrárias à realidade, elas partem do pressuposto do real. É a abertura do pensamento de Steinhardt à realidade, própria do cristianismo, que foi perdida.


O Autor:


Nicolae Steinhardt nasce em Bucareste, em 29 de julho de 1912. Estreia pública muito precoce na revista do Liceu Spiru Haret. Forma-se em 1929 e frequenta o cenáculo “Sburãtorul”, e em 1932 licencia-se em direito. Em 1934 começa a colaborar na Revista burgheza e publica sob o pseudônimo de Antisthius o volume paródico în genul...tinerilor [À maneira... dos jovens]. Doutora-se em direito em 1936. Em 1935 e 1937 publica, juntamente com Emanuel Neuman, os estudos Essai sur une conception catholique du Judaisme [Ensaio sobre uma concepção católica do judaísmo] (Bucareste), e Illusions et réalités juives [Ilusões e realidades judaicas].

Colabora com a Libertatea e com a Revista Fundaţiilor Regale. Depois da Guerra, publica, por um período curto, em Universul literar, Victoria Tribuna poporului e, de novo, na Revista Fundaţiilor Regale. Recusa-se a colaborar com o novo regime. Em 1960 é interrogado, depois condenado no “lote Noica-Pillat” a 12 anos de trabalhos forçados. Passa pelas prisões de Jilava (onde é batizado pelo padre Mina Dobzeu), Gherla e Aiud. Libertado em agosto de 1964, voltará depois de alguns anos ao mundo literário por meio de traduções, medalhões, crônicas etc. Em 1972 termina a primeira versão de sua obra–prima, O diário da felicidade. Publica volumes de ensaios e críticas muito bem recebidos, embora alguns sejam fortemente censurados.
Monge desde 1980, permanece ativo no terreno ensaístico e crítico.

Morre em 30 de março de 1989.